
Criar um coletivo onde as pessoas com necessidades complexas de comunicação (NCC) sejam protagonistas e possam discutir temas pertinentes ao cotidiano, refletir e propor ações transformadoras, com foco em uma maior inclusão social por meio da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA). Este é o objetivo do grupo ‘Vamos Papear?’, formado dentro da ISAAC-Brasil (um capítulo brasileiro da ISAAC – International Society of Alternative and Augmentative Communication), que conta atualmente com a coordenação de Samara Andresa Del Monte, jornalista e vice-presidente da ISAAC-Brasil. Ela é cadeirante, tem Paralisia Cerebral e utiliza os recursos de Tecnologia Assistiva e Comunicação Alternativa para se comunicar.
Samara está em um trabalho colaborativo com Eliana Cristina Moreira, fonoaudióloga, especialista em linguagem e membro do Conselho Consultivo na atual gestão da ISAAC-Brasil; e que vem fazendo o papel de tutoria no ‘Vamos Papear?’. Outros mediadores, como os membros da diretoria executiva atual da ISAAC-Brasil, também acompanham o trabalho do grupo, uma vez que a cada reunião muitos são os desdobramentos e tarefas.

Fundado em dezembro de 2022, o grupo realiza encontros virtuais para que todos possam participar com seus recursos de CAA. Eliana ressalta ainda que os primeiros encontros foram momentos em que os participantes se apresentaram e puderam conhecer um pouco sobre a história de vida de cada um deles e a atual “ocupação/trabalho”. “Foi feito um uma lista de temas conjuntamente com os participantes: comunicação, escola, trabalho (formação e emprego), vida sem a presença dos pais, sonhos, música, filmes/séries, relacionamento/sexo… e quando o assunto ‘trabalho’ surgiu, o grupo ficou muito mobilizado, provavelmente por se tratar de um aspecto atual do cotidiano deles, todos eles estão construindo um percurso profissional.
Até agosto deste ano, a fonoaudióloga contabiliza 13 encontros realizados, com periodicidade bimestral. “Mas, desde que o grupo vem organizando ações em forma de campanha, como a do Dia do Trabalho (realizada em maio), as reuniões estão acontecendo mensalmente”, destaca.
Como surgiu a ideia do ‘Vamos Papear?’
Eliana Cristina Moreira explica que a ISAAC-Brasil, por ser um capítulo da ISAAC Internacional, tem em seu estatuto a missão de divulgar e promover pesquisas e ações para a melhor comunicação possível das pessoas com deficiência e severos comprometimentos da fala oralizada. “Eu faço parte de um grupo dentro da diretoria expandida da ISAAC-Brasil que participa de forma mais direta na ISAAC Internacional, e uma das iniciativas da Associação chamou atenção desses membros: o grupo “The Leadership Project for People who use AAC” (O Projeto de Liderança para Pessoas que utilizam a CAA), que tenho acompanhado sendo um dos meus maiores interesses conhecê-lo e participar de suas reuniões específicas, e pude fazer isso nas Conferências Internacionais: Toronto/2016, Golden Coast/2018 e Cancún/2023. Na época, levei para a Comissão Organizadora do Congresso Brasileiro de Comunicação Alternativa da ISAAC-Brasil a ideia de trazer Lateef McLeod (pessoa com Paralisia Cerebral que, na época, era líder das pessoas com NCC e coordenador do “The Leadership for People who use AAC”). Assim, em 2019, no Congresso da ISAAC, conseguimos trazê-lo e ouvi-lo falar sobre o seu trabalho com o grupo que coordenava foi uma das principais inspirações para montarmos também um modelo brasileiro. Durante os anos de 2020 e 2021 um dos grupos de trabalho da gestão 2020-2021 começou a ser direcionado para discutir e elaborar atividades/ações com os familiares e pessoas com NCC, o GT8. No entanto, com a pandemia, os projetos tiveram que ser interrompidos”, conta Eliana.
Samara também esteve na Conferência Internacional da ISAAC, que aconteceu em Cancún em 2023 e, paralelamente, também começou a se aproximar do grupo “The Leadership Project for People who use AAC”, participando das reuniões on-line do grupo na época da pandemia: “Participei algumas vezes de um grupo da ISAAC Internacional, onde todas as pessoas falavam em inglês. Minha irmã dava apoio na tradução. No entanto, depois ela começou a trabalhar e não consegui participar mais”, destaca.
Mas, mesmo que não pudesse mais fazer parte, a experiência de estar presente em uma Conferência da ISAAC Internacional no exterior e conhecer o coletivo liderado por Lateef fez com que a ideia de construir um grupo no Brasil ainda permanecesse ativo em seus sonhos, que começaram a sair do papel em 2022: Samara retomou o projeto de criação do grupo nos moldes do “The Leadership Project for People who use AAC”, além de, na época, ter participação bastante ativa na Associação, como a elaboração de um projeto de ação para a ISAAC-Brasil (que fazia parte de uma seletiva para membros terem a anuidade gratuita). Ela também havia ingressado na diretoria da instituição, ocupando o cargo de vice-presidente. “Assim, a Samara começou a entrar em contato com algumas pessoas com deficiência e que utilizam a CAA e a organizar um grupo de bate papo que ela intitulou ‘Vamos Papear?’, cuja adesão ainda não era suficiente para a criação do mesmo. Então, com o apoio do GT8 foi realizada uma reunião para o planejamento de estratégias e, finalmente, dar o “start” na proposta da criação do grupo”, explica Eliana. Segundo ela, alguns profissionais experientes na área e com uma história na ISAAC-Brasil começam a fazer contato com várias pessoas com deficiência que já tinham atendido e que utilizam a CAA no seu cotidiano e, paralelamente, todos os associados foram convidados, juntamente com os seus familiares, a trazerem essas pessoas com deficiência para a primeira reunião, que aconteceu em dezembro do mesmo ano.

“Ao longo destes dois anos, o grupo vem crescendo, se desenvolvendo e acredito que iremos conseguir abrir muitos caminhos para o reconhecimento das pessoas com necessidades complexas de comunicação”, salienta a coordenadora Samara, que destaca o seu sonho em relação ao ‘Vamos Papear?’: “Divulgar mais a comunicação alternativa e a sua importância para as pessoas com necessidades complexas de comunicação, além de diminuir o preconceito que ainda sofremos em vários espaços, como por exemplo no mercado de trabalho”.
Quanto aos desafios de coordenar um grupo com tamanho propósito, Samara ressalta: “Eu gosto muito de coordenar o ‘Vamos Papear?’, mesmo sendo bastante trabalhoso articular com as pessoas, chegar numa data comum para fazermos o encontro”. Ela aproveita a oportunidade para fazer um convite às pessoas com necessidades complexas de comunicação: “Venha conhecer o grupo e participar das nossas discussões e reflexões”.
A força do coletivo
Luciano de Almeida Moura, 36 anos, é formado em Tecnologia em Marketing e participa do ‘Vamos Papear?’ também desde 2022. “Tenho Paralisia Cerebral, mas isso nunca me impediu de buscar meus sonhos e desafios. Acredito que a inclusão e a representatividade são fundamentais para criar um mundo mais justo para todos. A iniciativa do ‘Vamos Papear?’ é extremamente interessante e importante! O grupo oferece uma plataforma para que pessoas que muitas vezes não têm a oportunidade de se expressar possam ter sua voz ouvida. Os encontros têm sido muito enriquecedores, um espaço onde podemos compartilhar nossas experiências, aprender uns com os outros e sentir que fazemos parte de algo maior. A diversidade de opiniões e histórias torna cada encontro único e especial”, salienta Moura, que é também empreendedor: ele tem uma confecção e estamparia de roupas licenciadas, a Heart Merch (@heart_merch/). “Eu desejo que o ‘Vamos Papear?’ cresça ainda mais, atingindo um número maior de pessoas e gerando um impacto positivo na sociedade. Espero que possamos continuar a construir um espaço onde todos se sintam valorizados e onde suas histórias possam inspirar outras pessoas”, salienta o empreendedor, que deixa a seguinte mensagem às pessoas com deficiência: “Todos nós temos uma história única e valiosa para compartilhar. Não importa quais sejam os desafios que enfrentamos, nossa voz é poderosa e pode fazer a diferença. Acredite em si mesmo, busque seus sonhos e nunca subestime o poder da inclusão e da solidariedade. Juntos, podemos construir um mundo mais inclusivo e empático”, destaca o empreendedor.
André Luiz Silva de Azevedo (@andre_azved0), 42 anos, sofreu um AVC isquêmico de tronco em 2016 e faz uso do controle ocular. Ele participou, pela primeira vez, do ‘Vamos Papear?’ no último encontro realizado no dia 15 de agosto. “O grupo é muito interessante, pois promove a inclusão e disseminação de experiências na comunicação alternativa. Foi uma experiência incrível, fui muito bem acolhido! Achei bastante curioso a diversidade do grupo, além da aprendizagem que o encontro proporciona. Um bate papo inovador que tem um grande futuro e que vai colher muitos frutos. Temos que “papear”, ou seja, nos reunirmos mais vezes! E acredito que haja uma demanda grande de pessoas que tenham interesse em participar do grupo, que queiram ter ‘voz’, compartilhar experiências e serem ouvidas”, destaca André, que está prestes a lançar seu primeiro livro “Metamorfose da Mente”, escrito por meio do rastreador ocular.
Eliana ressalta também: “O ‘Vamos Papear?’ não é um grupo terapêutico! Então vem os desafios, muitas são as demandas das pessoas com NCC por um espaço de diálogo e os aspectos da vida pessoal acabam aparecendo, alterando, assim, a dinâmica de um grupo de trabalho. Outro grande desafio quanto à tutoria é em relação aos recursos de CAA de cada um dos participantes, que, muitas vezes, não estão bem ajustados para uma reunião on-line, o que acaba prejudicando a possibilidade de expressar suas opiniões durante o encontro. Por fim, saliento que ainda não há um reconhecimento do grupo pela sociedade, e aqui falo da comunidade que fala e discute CAA no Brasil e, dessa forma, as pessoas com deficiência presentes no grupo têm alguma relação com os mediadores. Ou seja, não temos a inserção de outras pessoas com NCC do país, o que, certamente, poderia agregar muito em nossa proposta se houvesse a participação de outros jovens/adultos de outras regiões/estados”, destaca.
Para ela, o coletivo traz uma força para que as transformações na sociedade ocorram: “Vejo que esse aspecto vem sendo refletido dentro do ‘Vamos Papear?’, o grupo amadurecendo e uma dinâmica mais coletiva aparecendo. Meu sonho é que isso venha a ter continuidade e assim o grupo ter uma estrutura mais solidificada e com reconhecimento da sociedade. Outro ponto importante do grupo é incentivar que as pessoas com deficiência tenham acesso aos novos recursos de CAA e, assim, caminhem para uma atualização que possa proporcionar maior independência e autonomia e também nas reuniões on-line”, ressalta Eliana.
“É muito importante que a pessoa que não fala oralmente, mas que usa a CAA, conte sua própria experiência, os impasses no círculo social, profissional, educacional, entre outros. Eu vejo que é muito diferente a posição de um terapeuta que atua na área e que participa dessa “luta” da inclusão na sociedade, da “luta” de quem vive tudo isso “na pele” diariamente”, ressalta Tatiana Dudas, fonoaudióloga, mestre e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, e membro da ISAAC-Brasil (cuja diretoria ela também já fez parte). Tatiana acompanhou toda a jornada do ‘Vamos Papear?’ desde o início e destaca: “Fico muito surpreendida em vários momentos com as reflexões que surgem no grupo. Todos os participantes são adultos e decidem os temas de interesse que surgem da dificuldade vivida por eles. Os temas discutidos são desdobrados em ações anticapacitistas e que mostram que a ausência de fala oral não é o mesmo que ausência de compreensão, que muitas vezes é confundida. Aquilo que é vivido pelo grupo e que faz parte da vida de qualquer pessoa, é trazido pelos participantes como algo difícil e desafiador, como por exemplo, o ingresso no mercado de trabalho, a ida a shows, namoro, a dificuldade de encontrar pessoas que queiram conversar pelo sistema de comunicação alternativa, por ser demorado e por achar que essas pessoas não têm nada a dizer. Tais impasses resultaram em ações importantes, como discussões com pessoas especialistas no assunto, lives, campanhas, entre outras, não só para o grupo, mas para a sociedade toda. É preciso que todas as pessoas, independente de suas especificidades, possam participar ativamente de momentos de lazer, trabalho, estudo, entre outras, sem barreiras atitudinais ou físicas”.
Tatiana salienta também: “A sociedade precisa discutir e desmistificar alguns pontos importantes sobre quem usa a CAA. Dar oportunidades a essas pessoas para que possam ter uma vida em que seus direitos sejam garantidos, seja o direito de trabalhar, sair, ter independência, namorar, ter um lugar de protagonismo, com tomada de decisão e não só de dependência do outro, que muitas vezes também se confunde com “incapacidade”. O tempo todo o grupo traz a vivência do capacitismo no dia a dia, em que são impossibilitados de prestar um concurso, de tirar o título de eleitor, de tomar suas próprias decisões, tendo que provar que podem, sim, decidir o que querem, que podem, sim, falar com um sistema de CAA. Portanto, meu desejo é que cada vez mais o grupo se fortaleça, cresça e tenha um alcance cada vez maior em todos os setores da sociedade, conscientizando e informando sobre a área da CAA, e que cada participante ocupe todos os espaços que quiserem”.
Para a fonoaudióloga Janaina Maria Maynard Marques, especialista nas áreas de linguagem, fonoaudiologia neurofuncional, fonoaudiologia educacional, saúde coletiva e motricidade orofacial, que faz parte da diretoria expandida da ISAAC-Brasil, a importância do ‘Vamos Papear?’ não é apenas para as pessoas com NCC: “Mas, também aos membros profissionais interdisciplinares quanto espaço de escuta e aprendizagem a partir da “fala” de quem usa a CAA; e à sociedade quanto alvo de ações do grupo com o objetivo de sensibilizar, orientar e conscientizar sobre os direitos à comunicação e à inclusão efetiva; a necessidade de termos e sermos uma sociedade mais acessível”. Ela idealiza ainda que o grupo se fortaleça e assuma seu espaço de fala para além dos objetivos atuais: “Que possamos ser uma frente ativa de trabalho para propostas de políticas públicas e de projetos de leis relacionados ao direito à comunicação e à validação da multimodalidade comunicacional… um direito instrumental para a garantia ao direito à saúde, educação, trabalho, esporte/ lazer/ turismo, etc”.
A terapeuta ocupacional Marisa Hirata Fabri, associada da ISAAC-Brasil, avalia a evolução do ‘Vamos Papear?’ desde o seu surgimento e destaca os seguintes pontos: “Crescimento e maturidade do grupo, participação das famílias e compromisso com as reuniões”. Entre as suas expectativas e sonhos para o projeto estão: “A participação de um maior número de pessoas com necessidades complexas de comunicação e menor dependência do terapeuta moderador”.
Rachel Botelho, pedagoga, psicóloga, especialista em neuropsicologia, psicopedagogia, terapia ABA e tecnologia assistiva, é membro e secretária da ISAAC-Brasil, mesma função que exerce como apoio ao ‘Vamos Papear?’. Por morar nos EUA, acompanha de perto as ações da ISAAC Internacional (cuja sede está localizada no Canadá), alinhando suas campanhas às do capítulo brasileiro da instituição. “Muitas vezes, as pessoas com necessidades complexas de comunicação são silenciadas e invalidadas por causa da valorização da fala, e isso me incomoda muito. Por isso, o grupo ‘Vamos Papear?’ é muito importante para que haja a socialização das suas ideias e trocas de experiências em um ambiente virtual acolhedor e saudável, pensado para essas pessoas e constituído por elas. Ali brotam ideias de uma forma coletiva, mediada por profissionais experientes. Desses encontros, muitas vezes, surgem temas que até mesmo profissionais e ou familiares de pessoas com NCC ainda não tinham refletido”, ressalta Rachel, que almeja que o grupo seja convidado para tomada de decisões no que diz respeito à política públicas, educação, saúde e estratégias.
Hoje, o ‘Vamos Papear?’ conta com 12 pessoas com deficiência, sendo quatro o número de participantes a cada encontro. “O lema “Nada Sobre Nós, Sem Nós” vem sendo uma atitude das pessoas com deficiência que acreditam que elas precisam estar envolvidas no planejamento de estratégias e políticas públicas, assim como também devem ter uma participação ativa para que as melhorias reflitam de fato suas necessidades e resulte em melhoria na qualidade de vida”, enfatiza Eliana. Segundo ela, entre os próximos passos do ‘Vamos Papear’ estão: um planejamento de ações a curto e médio prazo do grupo junto a diretoria expandida, com discussões e participações em políticas públicas.
A tutora Eliana adianta que, da mesma forma que uma das tarefas do “The Leadership Project for People who use AAC” é discutir e planejar o tema do mês de Conscientização da Comunicação Alternativa, em outubro, o ‘Vamos Papear?’ também está se engajando no tema “Vibes of AAC” (na tradução: na onda da CAA) deste ano, proposto pela ISACC Internacional. “Teremos desdobramentos interessantes a partir deste tema e estamos pensando nas diversas ações para o mês de outubro no Brasil”, diz a fonoaudióloga, que ressalta: “A ISAAC-Brasil é uma associação onde todos são voluntários e sempre temos a necessidade de uma força tarefa maior para dar conta de todas as ações que precisam ser planejadas e realizadas no país, então fazemos projetos de curto prazo com as pessoas com necessidades complexas de comunicação atualmente envolvidas e atuantes na Associação”.Para participar do grupo ‘Vamos Papear?’ não é necessário ser membro da ISAAC – Brasil, no entanto é importante que o participante utilize a CAA, com ou sem ajuda de interlocutores, mas que haja a genuína vontade de conversar, ‘papear’ e contribuir com o coletivo. Como os encontros são realizados de forma on-line pela plataforma Zoom, é necessário ter acesso a recursos tecnológicos. Além disso, as discussões e o ‘bate-papo’, após os encontros, continuam pelo WhatsApp do grupo. Os interessados devem enviar um e-mail para secretaria@isaacbrasil.org.