Em tempos em que o tema inclusão escolar ganha cada vez mais destaque nas discussões acerca do acesso de crianças com deficiência à Educação, compartilhamos uma história inspiradora: a instituição de ensino ‘Encontro Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil’, que, dos 41 anos de existência, praticou a verdadeira inclusão ao longo de 38 anos, em uma época em que pouco se falava sobre o assunto e a educação especial era autorizada apenas às escolas especiais.
Foi fundada pelas psicólogas Maria Antonieta Voivodic* e Solange Henriques Ferreiro, inicialmente sob o nome de “Arco-Íris”. Porém, um fato fez com que o questionassem, alterando-o para “Encontro” – mudança que aconteceu não apenas no nome da escola, mas também a trajetória da instituição de ensino e confirmando, principalmente, a sua missão de vida: a matrícula de um aluno com hidrocefalia. “A mãe da criança não havia mencionado nada a respeito da deficiência, mas havíamos notado algumas características peculiares, como cabeça grande em relação à idade e estatura do aluno, alguns comportamentos de uma criança sem limites, até que, dois meses frequentando a escola, esse menino empurrou uma criança, que reagiu, empurrando-o de volta e fazendo-o cair no chão. Não foi nada grave, mas ele entrou em pânico, dizendo que não podia bater a cabeça por ter uma válvula. Chamamos a mãe da criança, explicamos o ocorrido e então questionei o que era a válvula que ele havia mencionado, até que ela confirmou a hidrocefalia. Eu disse que não poderíamos manter a criança em nossa escola porque não éramos especializados no assunto e também porque a autorização para trabalhar com alunos com deficiência era concedida apenas às escolas especiais, na época. Então, a mãe argumentou que se não fosse a queda, não saberíamos de sua deficiência e não o recusaríamos, e que nesse período de dois meses, ele já demonstrava uma grande melhora em seu desenvolvimento, além de gostar bastante da escola, diferentemente da anterior, que ela nos contou que era uma instituição de ensino especial”, diz.
Maria Antonieta então relembrou o exercício anterior em instituições de ensino especial nas quais já havia trabalhado e o quanto a incomodava a falta de oportunidade que as crianças com deficiência tinham quando frequentavam escolas especiais, uma vez que, segundo ela, tais estabelecimentos focavam nas limitações e na deficiência da criança, ao invés de priorizar a autonomia e as potencialidades de cada um. Assim, com a força de vontade de fazer a diferença na vida dessas crianças, é que a psicóloga decidiu aceitar o desafio e prometeu à mãe que iria tentar. Foi então que, ao conhecer o trecho do renomado psicodramatista Jacob Levy Moreno: “Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face (…) então verei você com seus olhos e você me verá com meus olhos”, que Maria Antonieta refletiu sobre o verdadeiro significado da vida que, para ela, seria o encontro entre as pessoas. “Passei a refletir que somente pelo encontro é que a inclusão acontece quando olhamos para a pessoa com deficiência com o olhar dela e não com o nosso”, salienta.
Assim, o nome Arco-Íris deu lugar a “Encontro”: “até porque, chegamos à conclusão de que no arco-íris as cores são separadas entre si, o que passava, naquele momento, uma ideia contrária ao que estávamos buscando: de incluir todos os alunos, com e sem deficiência, em um grande encontro proporcionado pela vida”, explica.
E, assim, a escola começou a receber alunos com deficiência e, claro, diversos desafios também surgiram: “Vários pais começaram a reclamar quando havia algum aluno com deficiência na turma dos seus filhos. Alguns argumentavam que seus filhos típicos estavam copiando comportamentos e trejeitos de crianças atípicas e, por isso, tinham receio de que seus filhos ‘fossem contaminados’ e se tornassem crianças com deficiência. Em uma das reclamações, um pai me trouxe a insatisfação de que seu filho estava copiando comportamentos de uma criança com Síndrome de Down. Mas eu o questionei: ‘Como seria se fosse o contrário e essa criança com deficiência copiasse o seu filho por meio da observação, não seria positivo? Além do que, as crianças típicas teriam ganhos incalculáveis para a vida toda pela convivência com as diferenças. Ainda assim, muitos pais tiraram seus filhos da escola, tivemos também dificuldades com os professores, que não se sentiam preparados para lidar com a deficiência. Uma professora, inclusive, pediu demissão ao saber que começaríamos a aceitar alunos com deficiência. Muitas vezes, tivemos que esconder as crianças com deficiência quando a Secretaria da Educação vinha nos visitar por conta de alguma denúncia, pois, não podíamos aceitá-las na época, afinal a Lei Brasileira de Inclusão nem existia. Ou seja: foram muitas as adversidades, mas persistimos. Buscamos capacitação, primeiramente, nossa como diretoras, e posteriormente aos professores. Passamos a fazer reuniões de pais constantemente para esclarecer as inúmeras dúvidas e insatisfações que surgiam, porque acreditávamos que a escola poderia desenvolver todas as crianças, principalmente as com deficiência, que não teriam a mesma oportunidade em escolas especiais”, destaca.
Os desafios da inclusão
Com o aumento da procura de famílias de crianças com deficiência pela escola Encontro, Maria Antonieta buscou ainda formações e especializações na área, como psicomotricidade, e se tornou Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento. Passou também a ser reconhecida pela Delegacia de Ensino (quando a temática da deficiência e inclusão começou a ganhar notoriedade), e a ser convidada por diversas escolas a palestrar sobre a inclusão escolar, sendo chamada também a ministrar cursos de formação a professores da rede estadual de ensino por conta dos cases de sucesso de crianças com deficiência que estavam adquirindo autonomia durante a sua jornada escolar na Escola Encontro.
“Passamos a ouvir reclamações dos pais por não ter nenhum aluno com deficiência na turma de seus filhos, porque eles mesmos começaram a constatar que, quando as crianças conviviam com algum aluno com deficiência, eram perceptíveis as melhoras como seres humanos, com um maior olhar para a compaixão, empatia e ajuda ao próximo – e é disso que a sociedade precisa, principalmente nos dias de hoje, não é?”, propõe a reflexão.
Ao longo de mais de quatro décadas de existência da Escola Encontro, foram diversos os cases de sucesso de emocionar qualquer ouvinte. Um deles, é o de um aluno autista com Síndrome de Down que tinha como comportamento desafiador permanecer embaixo da mesa o tempo todo. “Passamos a trabalhar com essa criança, de modo a acolhê-la, e a orientação era que a professora se abaixasse e sentasse no chão junto com ele. Com paciência e amor, respeitando seu tempo, após um ano, ele, finalmente, saiu daquela posição – a professora chorou de emoção nesse dia e todas as demais crianças ficaram tão felizes e eufóricas, que todas queriam que ele sentasse junto com cada uma. A partir desse dia, os alunos se posicionavam embaixo da mesa, como uma brincadeira, até a professora entrar. E então, todos saíam juntamente com ele, era uma grande festa! Os pais também ficaram muito surpresos, pois nem eles acreditavam que um dia ele conseguiria sair desse isolamento próprio em sala de aula. Esse aluno permaneceu na escola dos 2 aos 7 anos e seu desenvolvimento foi bastante notável”, relembra.
Maria Antonieta conta ainda o caso de uma menina de 6 anos com uma síndrome neurológica rara, que a deixou com mobilidade reduzida, prejuízos na fala, e, por conta da deficiência, era uma criança que se vitimizava em alguns momentos. “Fazíamos diversas adaptações para que essa aluna pudesse participar de todas as atividades com as demais crianças. Ela tinha uma espasticidade muito grande, por isso, inventamos uma forma de adaptar a mesa dela para que ela pudesse jogar, por exemplo, um quebra-cabeça ou joguinho, como todos – revestimos sua mesa com um tipo de ímã, que a ajudava muito. As outras crianças começaram a pedir também esse revestimento de suas mesas e então acabamos revestindo de todos! Ou seja, por conta de uma adaptação a essa criança, encontramos uma nova forma para todos poderem jogar os joguinhos e todos adoraram! Em um determinado momento, decidimos dar mais autonomia para ela e orientamos que os demais alunos deveriam pensar em alternativas para que fosse possível a participação dessa aluna em todas as brincadeiras. As crianças passaram a ajudá-la e o mais interessante é que elas começaram a perceber coisas que nós, adultos, não tínhamos percebido: de que a aluna conseguia fazer mais coisas sozinha, mas que não fazia porque nós, professoras, fazíamos para ela, como pegar seu lanche na lancheira – as crianças notaram que quando ela queria pegar algum brinquedo que também estava dentro da lancheira, ela o fazia sozinha, mas na hora do lanche, ela aguardava que alguém pegasse para ela. As crianças resolveram não ajudá-la mais e, daí em diante, ela mesma passou a pegar seu lanche sozinha! São pequenas coisas, mas de extrema importância para o desenvolvimento da autonomia da criança com deficiência”, salienta a especialista.
Outro exemplo que ela cita com orgulho é o caso de um aluno que apresentava comportamentos inerentes ao autismo, apesar dos pais não terem mencionado em momento algum a deficiência. “Nunca demos importância para isso, lidamos com ele como fazíamos com os demais alunos e qual não foi a minha felicidade ao me deparar recentemente com o nome desse ex-aluno como um médico bastante renomado?”, diz Maria Antonieta, que menciona também que aquele aluno com hidrocefalia – primeiro estudante com deficiência da escola Encontro – formou-se em História na PUC (Pontifícia Universidade Católica).
A psicóloga esteve à frente da escola Encontro até 2019, quando precisou priorizar a saúde, principalmente em tempos de pandemia. A instituição de ensino se manteve até dois anos após a sua aposentadoria da direção, deixando um legado que, com certeza, marcou para sempre a vida de seus alunos e, principalmente, um exemplo inspirador de que a inclusão escolar é possível.
Sugestão às escolas na promoção da inclusão
Maria Antonieta Voivodic acredita que há muitas coisas que precisam ser modificadas no sistema de ensino regular atualmente. “A minha experiência à frente de uma escola inclusiva ao longo de 38 anos me mostrou que a presença do Atendente Terapêutico (AT) nos moldes atuais apenas funciona em casos de deficiências muito graves, que comprometem bastante a autonomia do aluno ou quando este apresenta comportamentos desafiadores que possam colocar em risco a segurança de outras crianças, como agressividade exacerbada. Mas, na maioria das deficiências, o AT se torna um professor particular – o que não favorece a inclusão, uma vez que o aluno e o profissional se isolam dos demais alunos, sendo que o ideal é o contrário: a inclusão acontece quando todos convivem juntos, além do que os demais alunos são estimulados a ajudar os estudantes com deficiência, tornando-os pessoas melhores quando adultos e mais bem preparados para as adversidades da vida”, explica.
A especialista sugere um formato de tutoria, onde um profissional se torna responsável por fazer ‘a ponte’ entre a família e a escola: “O chamado tutor acompanha a criança na escola, mas sem se tornar exclusivo dela – seria o responsável por todos os alunos com deficiência, com a função de sugerir aos professores formas e atividades diferenciadas para incluir todos os estudantes, a partir de análises e conversas entre família e escola. Assim, seria uma figura importante principalmente no apoio aos professores e sua remuneração seria por parte da escola e não da família, que já tem diversos gastos com as terapias”.
Tal sugestão foi abordada em sua obra: “Inclusão escolar de crianças com Síndrome de Down”, resultado de sua Tese de Mestrado em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, que relata um projeto trazido da Espanha por pais de crianças com Síndrome de Down, que foi baseado no trabalho desenvolvido pelo educador espanhol Miguel Lopez Melero, que abordava essa ótica da figura do tutor no caso de crianças com Síndrome de Down em escolas regulares.
“As crianças com deficiência precisam ter oportunidade de se desenvolverem, pois como acontece hoje nas escolas, a deficiência é ainda mais ressaltada. Por isso, elas precisam estar junto com as demais crianças, mas junto mesmo, interagindo, e não apenas no mesmo ambiente físico. É preciso ainda que os profissionais percam o medo de lidar com as deficiências – algo que eu trabalhava com as professoras da escola: criei rodas de conversas semanais onde eu propunha a reflexão a cada uma sobre o olhar para o medo que a deficiência dos alunos instigava nelas e como lidar com tais inseguranças. Acredito que essa questão deveria ser trabalhada nas escolas atualmente, pois somente quando o professor está livre de seus medos é que ele encontra o caminho de como ensinar a todos. E não é o caminho das receitinhas de atividades adaptadas, mas, sim, aquele que propõe respostas à pergunta: como posso ajudar essa criança e todas as demais em sua jornada escolar?”, orienta.
A todos os profissionais que trabalham com educação regular, Maria Antonieta Voivodic sugere: “Ninguém está isento de um dia se tornar uma pessoa com deficiência. Por isso, vale a pena os professores investirem no encontro, pois estarão educando realmente pessoas que valem a pena, que farão, de verdade, encontros. Mas, para isso, é preciso que as crianças sejam inseridas nesse contexto o mais cedo possível para que se tornem adultos que consigam enxergar os outros dentro de suas diferenças e não dentro de suas igualdades”, finaliza.
*Maria Antonieta Voivodic é psicóloga, pedagoga, psicopedagoga, especialista em psicomotricidade e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atuou como diretora do Encontro Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil por 41 anos e como professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Instituto Apae e Unisal em cursos para formação de Educadores em Inclusão. É autora do livro do Inclusão Escolar de Crianças com Síndrome de Down (Editora Vozes), lançado em 2006, que hoje está na 8ª edição