
Uma gelateria onde os clientes precisam se adaptar para falar com os atendentes, que são surdos. Assim é a il Sordo (do italiano “o surdo”), que inaugurou na capital paulista, no bairro de Pinheiros, em março deste ano. “Chamo isso de acessibilidade reversa, onde os clientes é que precisam se virar para serem compreendidos”, brinca André Vasco (@andrevasco), apresentador, empreendedor e um dos sócios da il Sordo em São Paulo.
Ele descobriu, em 2015, uma perda auditiva e passou a usar aparelho auditivo apenas em 2021. A partir daí, passou também a olhar com outros olhos a questão da inclusão das pessoas com deficiência, principalmente, da comunidade surda. Ao final da pandemia, em 2021, em uma viagem rotineira a Sergipe, terra natal de sua mãe e de familiares, André visitou a il Sordo, em Aracaju, e se encantou! “Achei incrível o propósito, ainda mais porque unia duas das minhas paixões: gelato e a inclusão de pessoas surdas”.
Ao comentar sobre a il Sordo com o amigo de infância Felipe Paladino, este sugeriu trazerem o empreendimento para São Paulo e André conta que “pirou” na ideia: “Sendo a capital paulista a locomotiva do país, que tanto carece de opções inclusivas e ainda com um produto de extrema qualidade, conversamos com o fundador Breno Oliveira, que já havia recusado ofertas de diversos empresários para levar a marca a outros estados. No entanto, vendo a verdade do nosso propósito, aceitou a nossa ideia e, assim, iniciamos uma sociedade com ele. Levamos em torno de um ano para encontrarmos um local adequado e mais seis meses para a montagem da estrutura, que contou com equipamentos vindos da Itália, bem como algumas matérias-primas que são importadas de lá, como o pistache. Não economizamos, investimos de forma robusta na qualidade dos gelatos, em equipamentos e em treinamento de funcionários”, explica Vasco, que, inquieto por natureza, já havia empreendido anteriormente em outros segmentos, como moda e uma startup de áudio branding. Além da sociedade na il Sordo, ele também é sócio de uma produtora de vídeos publicitários e faz ainda publicidade para algumas marcas, como a GoPro, da qual é embaixador. Mesmo com a agenda cheia, André faz questão de estar presente na il Sordo, acompanha de perto a produção e valoriza os funcionários, cujo carinho e respeito com cada um é visível a quem visita o local.
“Muitas pessoas nunca tiveram contato com uma pessoa surda e a experiência acontece em… uma gelateria!”, destaca. E, para quem não sabe a Língua Brasileira de Sinais (Libras), não é preciso se preocupar na hora de fazer o pedido: no local é possível aprender as letras do alfabeto em Libras, expostas em quadrinhos na parede, além dos vídeos que ensinam os sabores e expressões, como ‘obrigado’. Há ainda a opção de apontamento no cardápio e uma pequena lousa para quem preferir escrever o pedido. “Aqui todo mundo se entende de alguma forma”, garante André.

Ele ressalta ainda que é comum clientes ouvintes ficarem surpresos com a qualidade do gelato, o que o deixa indignado: “A il Sordo chama mais a atenção pelo fato de sermos inclusivos do que pelo nosso gelato, que é de qualidade italiana. Ou seja, estamos em pleno 2024 e a inclusão ainda é algo anormal, sendo que deveria não só ser algo comum, mas diversos outros estabelecimentos deveriam ser tão inclusivos quanto a gente – é muito doido tudo isso! Digo que vivemos em um mundo semimoderno”, destaca. E complementa: “Estamos em uma era em que as pessoas estão mais preocupadas em mostrar – fazem um pouco e transformam isso em algo grandioso. Por mais que eu transite em meios de comunicação e tenha acesso a diversas gerações, nós fizemos a il Sordo sem alarde, sem ninguém saber. Não investimos em publicidade, não contratamos influencers para divulgarem a casa. Tudo o que fazemos é orgânico, porque acredito que melhor do que falar é… fazendo!”, salienta Vasco, que destaca que a inclusão na il Sordo não está apenas na contratação de funcionários surdos, mas também nos gelatos: há opções veganas, sem lactose e sem açúcar. Segundo ele, pelo fato dos gelatos de frutas, por exemplo, não terem gordura na composição, são também uma ótima opção às crianças.
De acordo com André, os sabores foram criados a partir da consultoria com um gelatier, que desenvolveu ainda exclusividades da casa, como o de mangaba e o Beethoven – em homenagem ao compositor que se tornou surdo aos 44 anos de idade, fato que não o impediu de continuar na carreira, criando até mesmo algumas das suas obras mais famosas, como a Nona Sinfonia. Quanto aos próximos passos, Vasco diz que pretende levar a il Sordo a mais regiões da capital paulista, além de diversas outras cidades do estado de São Paulo.
A oportunidade de trabalhar na il Sordo

“Passei quase um ano desempregada, procurei muitas oportunidades de trabalho, que foram negadas por causa da surdez. Em um trabalho anterior, em escritório, não havia acessibilidade, a liderança queria que eu atendesse o telefone, não oferecia nenhum tipo de adaptação e passei por muitas dificuldades com a comunicação. Eu já conhecia o trabalho do Breno Oliveira com a il Sordo em Aracaju, o acompanhava nas redes sociais e a intérprete em Libras, Fernanda Rodrigues Silva, é quem me indicou ao Breno quando abriram as vagas para a inauguração em São Paulo”, diz Cristiane Oliveira Gomes, gerente da il Sordo há quatro meses.
Segundo ela, os desafios do trabalho não são poucos: “É a primeira vez que gerencio um local grande e os principais desafios estão em lidar com os funcionários, afinal, são pessoas com perfis diferentes, como em toda empresa, além de eu ser responsável por manter tudo em ordem. Quanto à comunicação com os clientes, como trabalhei em outras empresas com pessoas ouvintes, não temos muitas dificuldades em lidar com a clientela que vêm na il Sordo, porque aprendemos a usar as diversas estratégias para nos comunicarmos. Além disso, temos muitos clientes surdos e intérpretes de Libras e a comunicação flui”, diz.
Cristiane salienta: “Eu gostaria de falar às pessoas surdas que não permitam que as pessoas ouvintes digam que os surdos são incapazes, porque já me falaram essa frase, mas eu consegui chegar aonde estou hoje. Precisamos divulgar, sim, o quanto nós, pessoas surdas, podemos alcançar nossos sonhos e chegarmos aonde quisermos!”.
Amanda Tenório trabalha também da gelateria desde a abertura da il Sordo em São Paulo, há quatro meses, e é responsável pela produção. “Tive várias experiências profissionais desafiadoras por ser surda. Já trabalhei em um restaurante japonês, onde preparava as comidas japonesas, mas era muito difícil a comunicação, pois todas as pessoas eram ouvintes e não havia acessibilidade. Atuei também com análise de compra e venda de ouro e também foi desafiador. Como eu morava em Aracaju e convivia muito com as pessoas que trabalhavam na il Sordo, quando soube que abriria uma unidade em São Paulo, perguntei ao Breno se tinham preenchido todas as vagas e então fui encaminhada à entrevista com a Cristiane, que estava fazendo a seleção. E fui contratada! Me mudei para São Paulo e a primeira vez que pisei aqui na il Sordo, já imaginava como ia ser incrível trabalhar com pessoas surdas, ver clientes surdos também, enfim, encontrar essa comunidade aqui. Uma vez veio um profissional italiano nos ensinar o gelato e, mesmo com um pouco de dificuldade para ele se comunicar, aprendi tudo, como a decoração dos gelatos, o sabor exclusivo Beethoven, entre outros. Foi incrível! Espero continuar evoluindo aqui na il Sordo, pois gosto muito de aprender”, salienta Amanda.
E trabalhar na il Sordo é também uma grande vitória para Alexander Pereira Cabral, contratado no dia 15 de julho, que diz que enfrentou diversos desafios na vida: ficou desempregado por quase oito anos, situação que foi agravada em decorrência de um acidente de carro que o manteve internado e traqueostomizado, quando descobriu um problema de saúde nos pulmões. “Por conta disso, além da surdez, as empresas não viam com bons olhos uma pessoa com problemas de saúde nos pulmões. Sentia vergonha, cheguei a passar fome. Mas, ainda assim, não desisti. Gosto muito de estudar, então fiz o curso de design de moda na UNIP em 2022, área pela qual sou apaixonado! Continuei me aprimorando, fiz diversos outros cursos para aprender todos os processos da moda e muitos professores elogiavam meus desenhos. Até que uma professora de um dos cursos me chamou para uma oportunidade no SBT, que era de reparos das roupas em geral. No entanto, uma pessoa da equipe começou a ter preconceitos comigo por eu ser surdo, por eu não conseguir me comunicar e acabei sendo demitido. Depois disso, tive muitas dificuldades para conseguir emprego, tentei abrir o meu próprio empreendimento, mas os altos custos o inviabilizaram”, ressalta.
Alex conta que em abril deste ano, a intérprete de Libras Fernanda Rodrigues Silva encomendou com o jovem o design de uma roupa para o Deaf’s Festival (evento da comunidade surda que, neste ano, aconteceu em São Paulo). “Fiquei imensamente orgulhoso – sempre fui tão colocado no chão e a Fernanda contou pra todo mundo na internet que eu ia fazer a roupa dela para o evento e, assim, muitas pessoas vieram conhecer meu trabalho e encomendar looks comigo. E eu não preciso nem dizer que a Fernanda arrasou na festa com a roupa que fiz pra ela”, brinca Alex. “Ela já havia me indicado à il Sordo e eu já tinha conversado com a gerente Cristiane, que entrou em contato comigo logo que abriram novas vagas. Está sendo uma experiência gigante e trabalhar com a Cris é fantástico, uma pessoa sempre gentil. E como aprendo rápido, está sendo um desafio que lido com muita animação! Atuo no atendimento e gosto de ter empatia com todos. Aliás, ressalto à sociedade que é preciso ter empatia com as pessoas surdas, porque não somos bobos. A gente precisa de igualdade e equidade e vale lembrar que qualquer pessoa pode se tornar surda um dia. Saliento ainda que nós temos as Libras e podemos nos comunicar e vocês também podem aprender a língua de sinais e ser nossos parceiros e aliados – junto com a gente!”.
História da il Sordo
A il Sordo foi fundada por Breno Oliveira, que nasceu surdo, e decidiu empreender pela falta de oportunidade de crescimento profissional e pelo preconceito no mercado de trabalho por conta da deficiência. Assim, a ideia inicial era montar uma food bike de açaí e de paleta mexicana em Aracaju (SE), sua cidade natal. Com o apoio da família e orientado pelo Sebrae, após capacitações em empreendedorismo, Oliveira, que até então era instrutor de Libras, participou de um curso de produção de gelato em São Paulo. Ele se apaixonou de imediato e, após estudos de custo e investimento, abriu em 2015, aos 22 anos, a primeira unidade da il Sordo em Aracaju. “Não aceitei ser como outras pessoas com deficiência auditiva que trabalham anos sem serem promovidos. Fui minimizado em entrevistas de emprego, muitos recrutadores não acreditavam na minha capacidade, não aceitavam a surdez”, lembra
Segundo ele, o propósito é ir além de apenas uma gelateria: oferecer aos clientes uma experiência diferente e inclusiva, pensada para garantir que a comunicação flua entre consumidores ouvintes e atendentes, mesmo para quem não tem conhecimento da linguagem de sinais, diminuindo as barreiras do preconceito. “Quem vem pela primeira vez não sabe bem como interagir. É o mesmo impacto que sentimos lá fora, mas aqui abrimos as portas para a diversidade. Os clientes são acolhidos, perdem a insegurança e passam a se comunicar melhor com os surdos”, diz o fundador.
Hoje, a il Sordo conta com três unidades em Aracaju, uma em São Paulo e uma loja franqueada em Salvador (BA). A marca tem se tornado referência no Brasil por conta do seu propósito de inclusão da comunidade surda: a empresa foi indicada ao Prêmio Veja, participou do Shark Tank e é certificada por sua excelência pela TripAdvisor, com nota máxima.
Confira: @ilsordosp e @ilsordogelato