
“O que vemos hoje nas escolas de educação infantil regular não é inclusão de crianças com deficiência, mas, sim, integração”, explica Maria Antonieta Voivodic*, psicóloga, psicopedagoga, especialista em psicomotricidade e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento, que esteve à frente por 40 anos de uma escola regular que atendia crianças com deficiência e promovia, de fato, a inclusão social, desenvolvendo-as para a vida. Ela é também autora do livro Inclusão Escolar de Crianças com Síndrome de Down (Editora Vozes), lançado em 2006, que hoje está na 8ª edição.
De acordo com a especialista, um dos grandes entraves do sistema de ensino brasileiro é que, em relação a alunos com deficiência, a forma de ensino não é adequada. “O que a grande maioria das escolas faz é apenas adaptar atividades para aquele aluno com deficiência. Mas a inclusão não é meramente adaptações de atividades a um modelo de ensino previamente estruturado, é muito mais do que isso: é uma mudança de olhar em relação à deficiência, tirando foco da falta e colocando a luz nas possibilidades. É acolher e respeitar a criança. A mudança deve ser na forma de ensinar”, explica.
Segundo ela, a estrutura existente hoje nas escolas, de manter psicopedagogas e fonoaudiólogos, não é suficiente, pois é fundamental que a forma do ensino também mude para que aconteça a inclusão: “para exemplificar, se a escola dará uma atividade sobre animais, é preciso que antes dessa aula as crianças sejam levadas a um zoológico, tirem fotos e tragam-nas para a atividade em sala. Assim, o professor poderá fazer uma discussão extremamente rica e as crianças aprenderão muito mais sobre o assunto. Ou seja: o sistema de ensino que temos hoje ainda é muito teórico e conteudista. É preciso ser revisto para que todas as crianças – com deficiência ou não – consigam, de fato, aprender”.
Além disso, para a especialista, para haver a inclusão social, o ideal é que as escolas estejam preparadas, começando no Ensino Infantil (EI): “é preciso entender que o ensino é a base para o futuro de uma criança e, por isso, tudo começa na educação infantil. Porém, o formato existente hoje é falho em relação à formação dessas crianças como pessoas ao não promover a inclusão como deveria, mas sim, como citado, apenas uma integração. Um ponto importante é que os alunos que convivem com pessoas com deficiência desde o Infantil aprendem desde pequenos o que é a diversidade, o respeito às diferenças, a cooperação e o trabalho em grupo. E é somente dessa forma que teremos uma sociedade mais humanizada”, esclarece a escritora. Ela acredita ser uma desvantagem para a criança com deficiência ser educada em escolas especiais, pois seu modelo será sempre a deficiência e não terá estímulos ao seu desenvolvimento. “Quando a criança está dentro de um modelo de ensino como o das escolas especiais, ela não consegue desenvolver tanto porque ela não consegue enxergar o padrão ‘normal’ se ela convive somente com o padrão da deficiência”, esclarece Maria Antonieta.
Por isso, para ela, a Lei 13.146/2015, chamada Lei Brasileira de Inclusão, é uma das grandes conquistas e resultado de mais de 20 anos de luta para tornar obrigatória a inclusão de alunos com deficiência nas escolas. De acordo com Maria Antonieta, ao longo dos anos à frente da escola, a evolução das crianças com deficiência ao conviver com os demais alunos era notória em diversas áreas: verbalização, raciocínio lógico, socialização por meio de brincadeiras em grupo, entre outros. “Essa diversidade que as escolas regulares apresentam é extremamente benéfica a todos, principalmente porque, dessa forma, todos da sala passam a entender que o respeito ao outro está acima das deficiências, diz. Segundo a especialista, um dos grandes problemas que vemos acontecer nas escolas de Ensino Fundamental e Médio é o bullying que vem crescendo constantemente. “Por isso é fundamental trabalhar com valores com esses alunos, desde a educação infantil para que ao chegar no Fundamental e Médio saibam respeitar os amigos em suas diversidades e deficiência ao invés de praticarem o bullying, um dos grandes desafios da atualidade em relação à formação desses adolescentes. Ou seja: precisamos de uma educação que forme uma sociedade mais humanizada”, ressalta.
O preconceito de pais e professores
“Vale lembrar que quando começamos nossa escola há 40 anos, ainda não se falava em inclusão. Fomos então um dos pioneiros desta proposta, aceitando crianças com deficiência em nossas classes regulares. Um dos grandes desafios foi lidar com o preconceito de pais de crianças sem deficiência que não aceitavam que os filhos estudassem em sala com alunos com deficiência. Além disso, tivemos professores que também não queriam trabalhar com essas crianças e pediram demissão. Mas insistimos em nosso propósito e, com o tempo, fomos capacitando toda a equipe para melhor entender o universo das deficiências para então incluir, de fato, tais alunos. Notamos, ao longo desses anos, que o que falta nas escolas regulares é uma mudança no olhar acerca das crianças com deficiência. Nós não queremos mudá-las, mas, sim, aceitá-las e ajudá-las a progredirem dentro de suas limitações”, explica.
A especialista diz ainda que as escolas, pais e professores precisam mudar a ideia de que “crianças com deficiência atrapalham o desenvolvimento da sala”, quando na verdade, elas trazem a grande contribuição de fazerem com que os professores pensem em formas diferentes de ensinar a mesma matéria, considerando a prática como ferramenta fundamental para que assimilem a teoria. “E, claro, como já citei, as crianças com deficiência têm muito a ensinar aos demais colegas sobre humanidade, tornando-os adultos com valores, com mais empatia e disposição a ajudar o outro. E é disso que o mundo está precisando: de pessoas humanizadas, que respeitem o outro e suas diferenças”.
Para lidar com o preconceito dos pais – tanto de alunos com e sem deficiência, a escola de Maria Antonieta promovia diversas reuniões e dinâmicas em grupo. “Dessa forma, por meio de atividades práticas, mostrávamos a importância de sabermos lidar com as diferenças e, então, os pais passaram a aceitar a ideia de termos alunos com deficiência. Muitos, ao ver o quanto seus filhos desenvolviam o lado humano e compreensível acerca das limitações do outro, até reclamavam quando na sala do filho não tinha nenhum aluno com deficiência”, diz.
A escritora relata o caso de um garoto autista que chegou na escola com 2 anos de idade e tinha o comportamento desafiador de ficar embaixo da mesa o tempo todo. “Para os pais era difícil aceitar que um dia esse comportamento iria mudar apenas com a nossa aceitação do que aquela criança podia dar naquele momento. Trabalhamos ao longo de um ano, respeitando a sua vontade: sentávamos no chão com ele, ficávamos ao lado, jogávamos uma bola para ele brincar, mas aos poucos, com paciência e amor pela criança que ele era. Enfim, respeitamos o seu tempo e, com muito acolhimento e aceitando como ele era, aos poucos ele foi saindo daquela condição de isolamento total. Esta criança permaneceu na escola até os 7 anos, tendo um grande desenvolvimento intelectual e ingressando depois em um dos grandes colégios tradicionais de São Paulo”, comemora.
Pandemia e educação inclusiva
A especialista ressalta que a educação on-line por conta da pandemia trouxe enormes prejuízos ao desenvolvimento das crianças no geral. “O contato social é importantíssimo, ainda mais no caso de crianças com deficiência”, explica. De acordo com ela, a maioria das crianças com deficiência não consegue acompanhar essa forma de ensino virtual, pois, para elas é muito importante a prática e a ludicidade para que ocorra a aprendizagem. “Infelizmente, o modelo on-line não as incluiu, pelo contrário: é um modelo totalmente de exclusão”, afirma.
Para a escritora, assim que possível, as escolas devem retomar o quanto antes as aulas presenciais para que essas crianças possam retomar suas atividades e, assim, o seu desenvolvimento. A especialista também não acredita no modelo de homeschooling, cuja proposta está para ser votada até julho deste ano. “É totalmente prejudicial a todas as crianças, sejam elas com deficiência ou não”, analisa.
Trabalhos voluntários
Maria Antonieta está aposentada, mas a paixão pela educação de crianças com deficiência continua e ela hoje atende voluntariamente famílias e escolas públicas que precisam de orientação sobre os desafios da inclusão escolar e social. “Os pais precisam de acolhimento em suas angústias para que possam lidar melhor com a deficiência dos filhos de forma mais leve e que não os eternize como bebês. É preciso respeitar a idade da pessoa com deficiência, aceitando suas vontades, que vão mudando na adolescência e na fase adulta, como acontece com todos nós. É preciso ainda que os pais não tenham o comportamento de superproteger os filhos, pois eles precisam aprender a lidar com suas limitações, entendendo que é possível realizarem tudo o que desejam, dentro de suas possibilidades”, diz.
Outro ponto de atenção que a especialista traz é que é preciso também observar o quanto os pais estão protegendo os filhos da própria deficiência: “muitas vezes os próprios pais não gostam de participar de grupos de WhatsApp, por exemplo, com outros pais de pessoas com deficiência. Mas assim como qualquer grupo formado por pessoas de mesmos interesses, participar de comunidades do tipo é benéfico para a troca de experiências e aprendizados. Além disso, vale alertar que muitas vezes a própria pessoa com deficiência não gosta de estar entre pessoas com deficiência. Ou seja, se isso acontece, talvez tenha dificuldade em se reconhecer como pessoa com deficiência. Por isso é tão importante que se relacione com grupos de pessoas com ou sem deficiência”, ressalta.
Maria Antonieta atende voluntariamente a distância e se coloca à disposição para ajudar famílias com filhos com deficiência e professores de escolas públicas que tenham o interesse de entender o universo das crianças com deficiência.

*Maria Antonieta Voivodic é psicóloga, pedagoga, psicopedagoga, especialista em psicomotricidade e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atuou como diretora do Encontro Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil por 40 anos e como professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Instituto Apae e Unisal em cursos para formação de Educadores em Inclusão. É autora do livro do Inclusão Escolar de Crianças com Síndrome de Down (Editora Vozes), lançado em 2006, que hoje está na 8ª edição