Os desafios vividos pela família diante da falta de informação e orientação de profissionais capacitados ao ter o filho caçula, Vinícius, diagnosticado com autismo em 2010, em um momento em que pouco se falava sobre Comunicação Alternativa e ainda menos sobre recursos de Tecnologia Assistiva, foi o que motivou a professora Renata Costa de Sá Bonotto, mestre em Linguística Aplicada e doutora em Informática na Educação, a abordar esse tema em sua tese: “Uso da Comunicação Alternativa no Autismo: um estudo sobre a mediação com baixa e alta tecnologia”.
“As primeiras alterações no comportamento do Vinicius surgiram quando ele tinha quase 2 anos. Ele vinha desenvolvendo aparentemente bem, falava algumas palavrinhas em casa. Mas, alguns meses depois de seu aniversário, a diretora da escola infantil que frequentava nos chamou sinalizando que, em alguns momentos, Vini parecia não estar ouvindo bem. Questionaram sobre otites e tentaram não nos alarmar. Em outros contextos, tínhamos percebido um pouco mais de apego a mim, antes ele era mais sociável e sempre ficava bem com outras pessoas. Na escola, parecia outra criança, começou a se isolar, gostava de um brinquedo específico e tinha uma brincadeira exploratória com saliva, que depois começou a acontecer em outros espaços também. As palavras que falava em casa não apareciam nas interações por lá. A pediatra percebeu o comportamento diferente e encaminhou para a neuropediatra, que descartou algo mais sério, mas recomendou uma psicóloga que fez uma avaliação inicial, sem ser conclusiva. Depois de 8 meses de idas e vindas, passando por diferentes profissionais, até que um amigo da família, neuropediatra, nos direcionou para uma consulta com outro neuropediatra referência em autismo. Por fim, logo que completou 3 anos, chegou o diagnóstico: autismo”, conta Renata.
Como profissional e pesquisadora do campo da linguagem, o diagnóstico de autismo – que envolve o desenvolvimento atípico da interação social e da comunicação – lhe despertava muitas dúvidas e inquietações. Renata também comenta sobre os efeitos de tomar conhecimento de autistas influentes como Temple Grandin e outros, sem fala natural, que impressionam por sua habilidade comunicativa através de recursos de CAA de baixa e alta tecnologia, como Carly Fleischmann, Tito Rajarshi Mukhopadhyay e Ido Kedar. Ela se perguntava porque não tinha conhecimento de casos assim no Brasil, até aquele momento. E, acrescenta: “Eu vislumbrava muitas possibilidades por meio do uso de formas alternativas de comunicação somadas ao avanço da tecnologia com tablets, smartphones e recursos de acessibilidade que começavam a ficar mais conhecidos e fáceis de obter no país. Tudo isso apontava para um horizonte de perspectivas muito animadoras e ainda pouco conhecidas e estudadas”.
A especialista ressalta o potencial dos recursos de TA e CAA: “Sem a disponibilidade desses recursos, pessoas com impactos maiores na sua comunicação ficam desamparadas e correm riscos que podem impactar de forma muito significativa seu desenvolvimento e participação social.” A implementação da CAA em casa começou a ser considerada quando o filho já estava com quase 6 anos, mas a partir de seus estudos, sobre Intervenção Precoce e CAA, entendeu que os benefícios são muito maiores se o uso de CAA começa bem cedo. Hoje, ela estimula outras famílias: “mesmo que não haja ainda o diagnóstico fechado, se a criança apresenta restrições na comunicação, não espere! Se ela está aquém dos marcos do desenvolvimento para a linguagem e interação, a CAA só ajuda. Com o conhecimento que temos sobre neurociência hoje, estimo que com acesso à CAA na primeira infância, crianças com desenvolvimento atípico podem alcançar um desenvolvimento de linguagem e comunicação compatível com sua faixa etária e, muitas podem, inclusive, desenvolver a fala. Algumas pesquisas têm confirmado isso”, esclarece.
De motivações pessoais para a pesquisa aplicada
Motivada a compreender melhor esses fenômenos e a oferecer uma contribuição técnica e científica, a pesquisa mais a fundo envolvendo autismo, família, Comunicação Aumentativa e Alternativa e Tecnologia Assistiva veio com o ingresso no doutorado em 2012. A frase de abertura de sua tese, uma citação de Theo Peeters, resume sua percepção sobre a temática: “A palavra falada é uma ilha em meio a um oceano de possibilidades de comunicação”.
A pesquisa de campo contou com o acompanhamento de três mães com filhos autistas entre cinco e oito anos de idade na implementação da CAA ao longo de seis meses. “A falta de profissionais informados e capacitados para orientar as famílias em relação aos recursos de Tecnologia Assistiva, que ainda hoje se percebe, era ainda mais intensa em 2015. Os raros atendimentos tinham como foco as intervenções terapêuticas na clínica. Não se falava de comunicação como um direito e nem da centralidade da família na condução de interações significativas mediadas pela CAA, que já eram aspectos recorrentes na literatura envolvendo autismo e CAA.”
Para ilustrar essa lacuna, Renata lembra que uma das famílias tinha alguns vocalizadores, mas não sabia como utilizá-los em benefício da comunicação do filho. Com exceção de uma das crianças, as outras duas não haviam sido encorajadas a usar a CAA pelos profissionais que as acompanhavam, mesmo que os filhos já estivessem com 6 e 8 anos de idade. Assim, ela refere que começou a compreender que o desafio maior está mais nas relações que na criança e no recurso tecnológico em si.
No estudo, a Matriz de Comunicação foi a ferramenta utilizada para entender o perfil de comunicação no início e fim do estudo e para definir objetivos, necessidades e prioridades. “A partir desse referencial inicial, conseguimos pensar como a CAA poderia agregar para o avanço de habilidades comunicativas com parâmetros”, explica.
A pesquisa envolveu o uso de recursos de baixa e alta tecnologia. Renata relata que a parte inicial construindo e organizando os materiais em baixa tecnologia, os desafios como encontrar figuras, editar e manuseá-las foram sendo resolvidos gradativamente por meio de orientação direcionada. O apoio em grupo e a aceitação dos recursos pelas crianças eram sempre animadores. “Fui ensinando às famílias a utilizarem ferramentas, desde o Word até aplicativos gratuitos disponíveis, como o SCALA, Picto4Me e Let Me Talk”, explica a pesquisadora, lembrando também que, naquele momento, mesmo a internet não era tão disponível como atualmente, com várias redes sociais e grupos de apoio online: “embora as famílias tivessem noção de que era possível usar imagens, elas não tinham um critério de como fazer isso ou como organizar seus recursos. Dessa forma, com as orientações que fui passando ao longo do estudo, elas foram se sentindo respaldadas”, salienta Renata.
Contudo, segundo a pesquisadora, a introdução de recursos de alta tecnologia se mostrou mais desafiadora. Uma das famílias em sua pesquisa não tinha um tablet para seu filho e tinha receio de ao iniciar o uso, que a criança desenvolvesse certa compulsão pelo dispositivo. Outra mãe, cujo filho já tinha um dispositivo e utilizava aplicativos específicos para lazer e atividades recreativas, receava que o filho não fosse aderir ao uso do tablet para se comunicar. Dúvidas e crenças diversas sobre o uso da tecnologia para o desenvolvimento da comunicação se somavam às habilidades e ao próprio domínio da tecnologia por parte das mães. Assim, o interesse pela alta tecnologia não teve, no primeiro momento, a adesão que a pesquisadora imaginava. Renata percebeu que a apropriação tecnológica e os processos de aprendizagem das famílias sobre o uso de recursos de CAA com seus filhos envolve também uma curva de aprendizagem própria – “não se trata só da criança, ou só do recurso, mas também da formação de bons parceiros de comunicação e as mediações afetivas, que são um fator primordial no sucesso da implementação da CAA”, esclarece.
As descobertas a partir dos dados
Na sessão de conclusão da sua tese, Renata destaca a importância de observar a comunicação não simbólica expressa em movimentos do corpo, expressões faciais, gestos, sons e vocalizações: “uma birra, uma crise são formas de expressão, que muitas vezes, são desconsideradas, mas são comportamentos comunicativos e, efetivamente, comunicação, mesmo que não convencional. A CAA, enquanto meio de comunicação simbólica, torna mais fácil entender ou, até mesmo, evitar comportamentos desafiadores. Aliás, uma das mães no estudo destacou que a diminuição da ansiedade foi um dos fatores mais marcantes diante da introdução da CAA. “O uso dos recursos facilitou a compreensão de intenções e o que se passava com a criança,” explica.
Renata cita algumas dessas situações: “Ao antecipar as atividades do dia por meio da organização de uma rotina visual, uma das mães começou a perceber e entender a fonte de inquietação do filho antes de ir a alguns lugares e encontrar algumas pessoas. Quando não queria fazer uma atividade ou ir a algum lugar, a criança reagia à figura. Em uma situação, descolou a figura da escola do velcro e jogou no chão. A mãe entendeu imediatamente que a criança não estava querendo ir para a escola e conseguiu conversar a respeito. Se ela não tivesse nenhum recurso visual de apoio, não conseguiria saber a fonte do incômodo da criança”.
Outro exemplo que a pesquisadora registrou se deu em uma festa. “Uma mãe tinha alguns vocalizadores, em um estava gravado ‘sim’ e, no outro, “não”. Em determinado momento, a mãe perguntou: “Você quer ir embora?” e a criança prontamente apertou o ‘sim’. Na sequência, a mãe perguntou: você quer dar tchau-tchau?” E ele apertou o ‘não’. Ou seja, queria ir embora, mas não queria dar tchau antes”.
Além da comunicação cotidiana, os processos de ensino e aprendizagem ficam limitados se não há um meio comum para a comunicação. “A CAA entra nesse escopo como acessibilidade para a comunicação, eliminando essas barreiras, que é algo muito comum para pessoas autistas quando elas falam pouco ou nada ou até mesmo para quando elas têm algum nível de oralidade. Com certeza, a CAA oferece uma gama de possibilidades para o desenvolvimento da linguagem. Como profissionais ou família, precisamos também buscar compreender as especificidades da comunicação para, então, conseguirmos apoiá-las”, salienta.
Passado, presente e futuro
Refletindo sobre os percursos da CAA, Renata salienta: “Temos uma conjuntura hoje diferente de 6 anos atrás, porém para chegarmos neste ponto de maior compreensão e disseminação da CAA e da TA, tivemos que construir esse caminho, utilizando a CAA e vislumbrando mais possibilidades, em especial, com o uso da alta tecnologia”, diz a pesquisadora.
Mesmo depois de concluir sua tese, Renata continuou dedicada ao estudo, prática, orientação e formação de outros profissionais. Em 2017, foi selecionada para participar de um intercâmbio profissional na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos com ênfase em Educação inclusiva (ADA Fellowship Program), quando teve a oportunidade de vivenciar o uso de recursos e apps de alta tecnologia. “Aprendi muito nesse período e um dos desdobramentos desse intercâmbio foi trazer para o Brasil uma das fonoaudiólogas com quem trabalhei nos EUA, Amy Starble, especialista em CAA, para uma série de atividades de trocas e formação com famílias, pesquisadores e profissionais da área da saúde e educação. Assim, tivemos, pela primeira vez no Brasil, um curso com ênfase em alta tecnologia, sistemas robustos de comunicação e letramento de pessoas com necessidades complexas de comunicação”, relembra.
Considerando o momento atual, Renata comenta que seria interessante repetir o estudo de sua tese com ênfase maior em habilidades comunicativas, sistemas robustos de comunicação, vocabulário, ocorrência da fala com a introdução de CAA, em especial, no período de Intervenção Precoce. “Com as mudanças no cenário atual, com menos resistências, mais médicos e profissionais recomendando aos pacientes e às famílias a introdução da CAA, creio que chegaríamos a resultados bem relevantes”, vislumbra. A especialista também destaca a importância das parcerias entre escola e família e observar essa interdisciplinaridade já que a CAA deve acompanhar a pessoa em todos os ambientes que frequenta.No que se refere à formação e avanço da área de CAA, Renata diz ainda perceber lacunas: “Muitas pessoas ainda não sabem sequer o que é CAA ou Tecnologia Assistiva ou, possuem um conhecimento muito raso sobre esses assuntos, por vezes, equivocado, como o mito de que a CAA atrapalha o desenvolvimento da fala ou que a CAA se resume ao uso de imagens”. Nesse sentido, ela comenta sobre a importância das pesquisas na área que vêm sendo realizadas nos diferentes núcleos nas universidades de norte a sul do Brasil dedicadas ao tema, juntamente, com a atuação de entidades que trabalham na disseminação da CAA, como a ISAAC-Brasil e o ComunicaTEA, associação que a pesquisadora ajudou a fundar e que tem um papel fundamental no apoio às famílias e aos profissionais.
Para ter acesso ao estudo completo, clique aqui.
Renata Costa de Sá Bonotto é formada em Letras-Inglês, especialista em Educação a Distância, Mestre em Linguística Aplicada e doutora em Informática na Educação. Atua na área da educação há mais de 20 anos com ênfase no ensino e aprendizagem, formação de professores e Tecnologias de Informação e Comunicação. Tem interesse em temas do desenvolvimento das pessoas com autismo e pessoas com deficiência em geral, incluindo o desenvolvimento da linguagem, comunicação e a aprendizagem mediada pela Tecnologia Assistiva, Desenho Universal para Aprendizagem (DUA), Inclusão Escolar e Social. É membro da ISAAC-Brasil – capítulo brasileiro da Sociedade Internacional de Comunicação Aumentativa e Alternativa. Atua em assessoria, consultoria e formação em Tecnologia Assistiva/Comunicação Aumentativa e Alternativa.
ADA Fellowship Program –
https://pfp-idefellowship.org/applicants-professional-fellows/spring-2017-ada-fellows-profiles/renata-bonotto-porto-alegre-brazil/
Atividades Amy Starble no Brasil – http://autismolinguagemecomunicacao.blogspot.com/2017/11/celebrando-e-cultivando-caa.html
ComunicaTEA – www.comunicatea.com.br
ISAAC-Brasil – https://www.isaacbrasil.org.br/