Um sonho que teve início com a determinação de quatro professoras
A prefeitura de Paulínia encerra o ano de 2024 com chave de ouro com a inauguração, no dia 17 de dezembro, do Centro de Formação da Rede Municipal de Educação (CEFORM) e do Centro de Referência Educacional de Apoio à Inclusão (CREAPI). O objetivo é que as escolas da rede municipal tenham suporte para garantir a inclusão de alunos com deficiência e também ser um local de treinamentos a professores. Além disso, o CREAPI conta com um laboratório de Tecnologia Assistiva, onde serão feitas capacitações acerca dos recursos assistivos, atendimentos às pessoas com altas habilidades, deficiência auditiva e visual; além da produção de material de comunicação alternativa a toda a rede de ensino.
O CREAPI, que tem a previsão de ser inaugurado na segunda quinzena de novembro, dará ainda continuidade a um projeto de empregabilidade, iniciado há dois anos no município, o de mapear as competências e habilidades de jovens e adultos com deficiência que estão finalizando o 9º ano do Ensino Fundamental. “Iniciamos uma parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e temos feito um treinamento dos nossos professores para identificarem as competências e habilidades dos estudantes com deficiência para o mercado de trabalho. Assim, o Centro também terá o papel de instrumentalizar esses jovens para que possam ocupar com maestria as vagas disponíveis para PcDs nas empresas, indústrias e comércio da região”, explica Rosangela Cristiani Lorenzi Kiill, Diretora do Departamento de Suporte à Educação Inclusiva da Prefeitura de Paulínia.
De acordo com ela, a inauguração de ambos os Centros representa mais do que apenas a abertura de novos locais de suporte à Educação Especial, mas, sim, a conquista de uma meta traçada em 2008 e o resultado de anos de uma jornada repleta de batalhas incansáveis pela inclusão de estudantes com deficiência no município.
Batalha essa que teve início em meados dos anos 2000, a partir da determinação de quatro professoras de Educação Especial que, na época e à frente do tempo, não cederam às diversas dificuldades que enfrentavam, não apenas nas escolas regulares, mas, também, advindas da esfera política. Cris Kiill, como é conhecida na cidade, é uma dessas profissionais e conta que a paixão pela educação inclusiva uniu as quatro profissionais determinadas e resilientes a seguir adiante para incluir os estudantes com deficiência, quando ainda nem existia a Lei Brasileira da Inclusão, instituída em 2015.
O início de um sonho, que hoje se tornou realidade
“Em 1998 eu entrei para a rede de ensino de Paulínia como professora de Educação Especial. Na época, existiam as salas especiais para os estudantes com deficiência, mas eu e mais três professoras observávamos que o trabalho não fluía, pois percebemos que se tratava muito mais de questões comportamentais do que intrínsecas à deficiência. Foi então que solicitamos à Secretaria de Educação Especial o fechamento das salas existentes. Tivemos bastante resistência, mas, quando argumentamos que queríamos tentar um outro modelo de trabalho por não acreditarmos mais naquele formato especificamente organizado, as salas especiais foram então fechadas”, relembra Cristiani.
Segundo ela, cerca de 56 alunos com deficiência que eram atendidos nas salas extintas, foram matriculados em escolas próximas às suas moradias. Na época, havia ainda um serviço denominado Projeto Sol, que consistia em quatro núcleos de educação não formal, que atendia estudantes de 7 a 14 anos – dentre eles, os estudantes com deficiência que, no contraturno, eram acompanhados por professores da Educação Especial. Assim, ela explica que esse foi o primeiro passo para que a inclusão começasse, de fato, a tomar forma na cidade. “Temos muito orgulho de falar desse processo, porque começamos com esse formato de AEE (Atendimento Educacional Especializado) muito antes do governo federal instituir esse modelo”, destaca Cristiani, que enfatiza as dificuldades enfrentadas nesse primeiro momento: “Enfrentamos muita resistência quando íamos até as escolas para orientar as equipes educacionais: as escolas fechavam as portas, pediam para sumirmos com os alunos que, na época, eram chamados de ‘especiais’. Ou seja, foram inúmeros os entraves, mas, ainda assim, por sermos um grupo de quatro pessoas determinadas, não desistimos e sempre seguimos adiante, em um trabalho incansável de argumentar e mostrar a efetividade daquilo que acreditávamos”, salienta.
Assim, de 2000 a 2005, o grupo das quatro professoras passou a fazer esse trabalho em toda a rede municipal de escolas de Paulínia: “Então não havia a possibilidade de ter crianças em sala especial. Todo aluno com deficiência que se matriculava em uma das unidades de ensino municipais ia direto para o processo de inclusão, recebendo apoio no contraturno nas salas de AEE, mas frequentando as aulas em escolas regulares. Em 2005, a Secretaria de Educação entendeu que não teria mais volta, então foi feito um concurso público para que fossem contratados mais profissionais, aumentando para 28 professores de Educação Especial – um aumento muito significativo porque a demanda começou a crescer também, ainda mais porque a rede de educação de Paulínia atende crianças desde a Creche até o Ensino Fundamental anos Finais, compreendendo também Educação de Jovens e Adultos, além de termos duas escolas de Ensino Médio profissionalizante”, destaca.
Naquele mesmo ano, Cristiani foi convidada a trabalhar na Secretaria de Educação, sendo que a Educação Especial, naquela época, era mantida sob os cuidados da Supervisão de Ensino Fundamental – área que, segundo ela, foi permitindo a construção de documentos, normativas e as próprias Diretrizes da Educação Especial em Paulínia, já na perspectiva da Educação Inclusiva. “Juntamente com o grupo dos professores de Educação Especial, propúnhamos formações para os professores da rede, para os funcionários e, assim, a implementação da inclusão foi se fortalecendo e o nosso trabalho foi ampliando, ao mesmo tempo que íamos mostrando para todas as gestões o quanto era importante e necessário o processo da inclusão escolar que estávamos desenvolvendo”, relembra.
O trabalho do grupo ia de vento e popa, principalmente com a instituição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, em 2008. “Na época, tínhamos também uma Secretária de Educação muito envolvida com a Educação Especial e foi onde conseguimos implantar as primeiras salas de recursos pelo governo federal. Ela nos autorizou a cadastrar o município e, então, fomos contemplados com 12 salas de recursos implantadas pelo MEC, que hoje somam 30, sendo 18 implantadas pelo governo municipal nos mesmos moldes”, enfatiza Cristiani Kiill.
No entanto, em meados de 2014, a consolidação do processo de inclusão começou a ser ameaçada por conta da política: a Secretária de Educação da época, por ser proprietária de escolas especiais em Paulínia, tentou fechar todas as salas de recursos das escolas municipais: “Ao tomar conhecimento, entramos em contato com o governo federal e aí pedimos uma auditoria na prefeitura para checar as irregularidades que estavam acontecendo. A Secretária foi notificada e, então, naquele momento, a Administração entendeu que não adiantava fazer mais nenhum movimento contrário ao processo de inclusão”.
As instabilidades políticas continuaram nos anos seguintes, em particular os anos de 2017 e 2018, como exemplifica Cristiani: “Foi um período bastante delicado e eu saí da Secretaria de Educação. Para coordenar a Educação Especial, foi designada uma profissional que queria retomar as salas especiais, mas não conseguiu por causa dos documentos normativos que estavam consolidados. Apesar dos entraves e momentos delicados na política, o grupo de professores de Educação Especial continuava unido e disposto a continuar tudo o que já tínhamos conquistado”, enfatiza.
Em 2019, houve uma eleição suplementar oficial em Paulínia, sendo eleita a atual equipe da Administração Pública. Assim, Cristiani Kiill voltou à Secretaria de Educação: “Pela primeira vez nesses 24 anos, passamos a ter, de fato, uma Administração que realmente acredita na Educação Inclusiva. Então, a partir de 2019, eu tive realmente apoio para instituir tudo o que fosse necessário para garantir a inclusão dos alunos com deficiência em escolas regulares do município. Passamos, assim, a um crescente de investimentos em recursos, tanto financeiro, quanto humano, consolidando, de vez, o processo de inclusão em Paulínia”.
Estrutura atual da Educação Especial em Paulínia
Segundo Cristiani Kiill, a rede do município é composta por 58 unidades escolares com aproximadamente 970 crianças, adolescentes e adultos com deficiência. Dessas escolas, duas são bilíngues para surdos (uma atende do 1º ao 9º ano e a outra atende a modalidade EJA – Educação de Jovens e Adultos que não concluíram os estudos na idade adequada, mas os retomaram para concluir a escolarização básica). “Vale destacar que apenas sete adolescentes frequentam a escola especial porque fizemos todas as tentativas e são casos graves que não se beneficiaram com a escola regular. Além disso, há também ensino domiciliar para alguns casos, realizado e organizado pela Educação Especial, além do atendimento da classe hospitalar”, explica.
Hoje, das 30 salas de recursos multifuncionais, duas são dedicadas a alunos com deficiência visual e uma a pessoas com altas habilidades/superdotação. Cristiani enfatiza ainda que desde a Educação Infantil, os alunos surdos são acompanhados pelos professores de AEE da unidade escolar e também por professores bilíngues. “Não trabalhamos com intérpretes, porque as crianças vêm com essa ausência da língua: o professor de Libras faz o ensino de Libras, interpretação, e a intervenção pedagógica. Por isso, optamos pelo professor bilíngue do que intérprete”, ressalta. De acordo com ela, todas as escolas do Ensino Fundamental têm suas próprias salas de recursos e o professor de Educação Especial está o tempo todo dentro da escola, o que confere ao professor regente de sala mais segurança e confiança.
“Mesmo sabendo que avançamos muito – ao longo dos últimos três anos, demos mais de 1500 horas de formação para os professores, gestores, profissionais de apoio e monitores e motoristas do transporte escolar -, claro que ainda enfrentamos dificuldades na inclusão, mesmo com todas as conquistas até agora, que culminaram em um processo consolidado. Quando lidamos com pessoas, não temos como imprimir no outro, de uma hora para outra, uma nova forma de olhar o mundo, a empatia pela pessoa com deficiência, com compreensão de que todas as pessoas têm a contribuir com o desenvolvimento da sociedade. Ou seja, não é só uma questão de formação, é também visão de mundo, de cultura, de valores”, destaca.
Cristiani salienta ainda que foi instituído em calendário escolar a Semana do Setembro Verde, que tem o objetivo de conscientizar a sociedade acerca da inclusão das pessoas com deficiência. A cada dia da semana, uma etapa de ensino é pausada: alunos e suas famílias participam de programações de conscientização nas escolas do município, enquanto os profissionais da educação recebem formação em relação à inclusão dos estudantes com necessidades específicas. “Dessa forma, vamos aos poucos quebrando as barreiras das pessoas que ainda não entenderam que o mundo é de todos”, enfatiza.
Recursos de Tecnologia Assistiva nas escolas
Cristiani Kiill explica que uma das frentes de trabalho da Educação Especial em Paulínia é também promover o acesso à jornada escolar por meio da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) e da Tecnologia Assistiva. Segundo ela, há 5 anos, as pranchas de comunicação eram construídas de forma tímida pelos professores de AEE. “Um dos grandes entraves à CAA era que, por vezes, a equipe clínica que atendia o aluno não trabalhava com a comunicação alternativa ou a família achava muito difícil lidar com toda a informação de uso da CAA em casa e o trabalho acabava ficando restrito à escola. Por isso, decidimos investir em mais recursos de Tecnologia Assistiva que pudessem melhorar e facilitar o trabalho da produção de materiais, como os softwares. Assim, passamos a mandar materiais prontos para as famílias, que não tinham a preocupação de elaborar, mas dar continuidade ao que tínhamos iniciado na escola. Passamos ainda a trazer essas famílias nas escolas e também as equipes clínicas para verem como os estudantes se comunicavam no ambiente coletivo”, salienta.
Mas, de acordo com ela, o que virou ‘a chave’ tanto para os professores, quanto para os próprios alunos com deficiência que não se comunicavam pela fala, foi a aquisição do controle ocular para as escolas: “Até então, esses estudantes dependiam dos professores com pranchas de comunicação para se comunicarem, mas, a partir do uso do controle ocular passaram a ter autonomia e ‘voz’, surpreendendo os professores. Um caso que me arrepia até hoje foi o de um professor em sala que acreditava que aquela criança que só mexia os olhinhos só passava tempo, sem nada compreender. Mas, quando essa criança começou a escrever com o controle ocular o conteúdo que havia sido passado na aula anterior, o professor ficou realmente assustado e todos, emocionados”, relembra Cristiani.
Portanto, segundo a Diretora, devido aos avanços no desenvolvimento de estudantes com prejuízos na fala, o uso do controle ocular foi ampliado nas escolas. Além disso, ela tem promovido rodas de conversas com pessoas com deficiência que também utilizam o controle ocular para desmistificar o uso do recurso: “Muitos professores, mesmo vendo a utilização na hora do recurso ficam em dúvida se é o estudante mesmo escrevendo com os olhos ou se é outra pessoa ou o sistema. Por isso, certa vez fizemos uma projeção em tela, mostrando o rastreio ocular, o que provou a todos os presentes que dentro daquela cabecinha, por mais que aquele corpo não responda, tem uma mente ativa capaz de entender tudo. Ressaltamos que nós, quanto profissionais da Educação, precisamos oportunizar para que essas crianças se desenvolvam por meio das tecnologias disponíveis. É incrível ainda o poder da socialização: as outras crianças adoram saber que o colega que até então não se comunicava, agora está conversando com todos da sala!”
Ela cita ainda outro caso: “Uma das escolas fez um interclasses e uma das gincanas era o soletrando. Uma das crianças faz uso do controle ocular e participou de igual para igual, sem ninguém auxiliá-la. E foi lindo de ver essa criança mostrando aos demais colegas o seu potencial: ainda que ela não saia daquela cadeira, que pouco participa fisicamente e não fale oralmente, ela pode, sim, ter uma possibilidade de interação e participação igual aos demais!”. Cristiani ressalta ainda que os recursos adquiridos pelo município passam por uma curadoria rigorosa, na qual quem testa são os estudantes e cujos feedbacks são determinantes para a compra ou não dos equipamentos de Tecnologia Assistiva. A Diretora do Departamento de Suporte à Educação Inclusiva da Prefeitura de Paulínia enfatiza ainda que o processo de inclusão no município só foi possível graças à Administração Pública e a Secretária de Educação, Angela Duarte, que acreditou na Educação Inclusiva, unindo a persistência inicial de quatro professoras que tiveram e têm como propósito de vida a árdua, mas gratificante missão de incluir estudantes com deficiência; que também não desistiram diante dos inúmeros obstáculos. “Digo que é um acreditar de verdade em uma sociedade diferente, uma sociedade que aceita e acolhe todo mundo, onde todos precisam ter as mesmas oportunidades. Por isso, acredito também que trabalhar com essas crianças no dia a dia no contexto educacional é uma das perspectivas para transformarmos esse mundo”.