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Mês de Conscientização do Autismo: os desafios em relação à Comunicação Aumentativa e Alternativa e o diagnóstico tardio

No dia 2 de abril foi celebrado o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, que tem o objetivo de trazer ao centro das discussões temas relacionados ao autismo, como a luta pela inclusão social e os direitos da pessoa dentro do espectro. A fonoaudióloga Valéria Santos, especialista em autismo, ressalta ainda como relevante questão a ser lembrada durante o mês todo a importância da utilização da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) como forma de melhorar a qualidade de vida dos autistas, uma vez que proporciona a comunicação. “Há um mito ainda de que a CAA é usada apenas por pessoas que não falam, porém qualquer pessoa com necessidades complexas de comunicação, sejam  crianças, jovens ou adultos com severo transtorno de comunicação, cujas necessidades de apoio em comunicação sejam amplas e variadas e que demandam esforços estratégicos e/ou recursos diferenciados para se comunicar podem se beneficiar do uso da CAA. As abordagens e intervenção em comunicação no autismo visam promover uma comunicação funcional e uma ampla participação”, explica.

A especialista diz ainda que a CAA trabalha com os autistas questões que nem sempre são faladas, mas que fazem parte da vida de muitos deles, como a ecolalia. “Ecolalia envolve uma repetição de enunciados ou frases produzidas por outro falante ou mídia, como programas de TV ou desenhos animados (Tarplee & Barrow, 1999). Existem dois tipos de ecolalia, a imediata e a tardia. A ecolalia imediata envolve repetições que são produzidas imediatamente ou em um breve momento após a produção de um modelo enunciado. A ecolalia tardia está produzindo um enunciado ouvido anteriormente. O uso da CAA pode ser benéfico para indivíduos autistas que usam ecolalia, auxiliando a transição da ecolalia para os estágios generativos da linguagem (Quill, 1995).  Estudos recentes mostram que o uso da CAA ajuda na diminuição de enunciados ecolálicos”, esclarece Valéria.

A fonoaudióloga explica também que outro ponto importante trazido pela CAA em relação à melhora da qualidade de vida das pessoas que estão no espectro é o aprendizado  do vocabulário essencial ou das palavras essenciais, que são um conjunto de palavras que podem ser usadas sozinhas ou em combinação para se comunicar para uma variedade de propósitos, em vários tópicos e com uma ampla variedade de parceiros de comunicação. 

“O vocabulário essencial fornece uma base importante para a comunicação, pois as palavras essenciais são flexíveis, uma vez que a mesma palavra pode ser usada de várias maneiras diferentes. No campo da CAA, o vocabulário essencial é um pequeno conjunto de aproximadamente 200-400 palavras, mudando pouco ao longo do tempo, usado de forma consistente em vários ambientes e entre indivíduos. E o vocabulário essencial consiste principalmente em palavras funcionais, por exemplo (mais, vamos, gosto, parar) e ele liberta! O fato de que o mesmo vocabulário principal poder ser usado em todos os ambientes dá para a pessoa o controle da funcionalidade desse vocabulário em todos os ambientes. Dessa forma, quando vou iniciar com a CAA as palavras essenciais são a minha prioridade e a escolha de quais palavras começar e a organização do sistema devem ser feitas com base em uma boa avaliação do paciente”, diz a especialista.

E devido à importância do uso das palavras essenciais no autismo é que Valéria escreveu um capítulo sobre o tema na obra “Autismo ao longo da vida”, da dra Deborah Kerches, que conta com diversos autores que são importantes referências em TEA e tem previsão de lançamento em maio, em São Paulo.

Valéria Santos – arquivo pessoal (Instagram)

Quanto ao Dia Mundial de Conscientização do Autismo, a especialista enfatiza: “Não desistam da comunicação, todos podem se comunicar e é um direito de todo ser humano! Falar é uma habilidade complexa, que envolve vários pré-requisitos, no entanto para comunicar o único pré-requisito é respirar e a CAA pode abrir as portas para a autonomia, a participação e a liberdade”. Ela ressalta ainda a importância dos pais buscarem ajuda de uma equipe multidisciplinar (com fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicólogo) a qualquer sinal que os levarem a achar que ‘há algo de estranho com a criança’ em relação ao seu desenvolvimento ou comportamento para que seja feito o diagnóstico o quanto antes e, assim, iniciarem as intervenções necessárias.

Shirley e Rui Lima viveram essa dificuldade do diagnóstico do filho mais novo do casal, João, 10 anos, por conta de uma má formação em seu coração. “Com apenas 8 meses de vida, João teve que passar por uma cirurgia de altíssimo risco e, por conta disso, os médicos sempre foram muito resistentes para afirmar se ele era mesmo autista; alegavam que todos os atrasos que ele passou a ter de dois anos e meio em diante poderiam ter sido pelas intercorrências médicas no pós operatório. O diagnóstico veio apenas aos 4 anos e meio, mas nós já estávamos conscientes desde os 2 anos e meio que ele estava no espectro. Buscamos intensamente fechar o diagnóstico”, explica Shirley.

Segundo ela, até os dois anos de idade, João tinha um desenvolvimento aparentemente neurotípico, porém, a partir dos 2 anos e meio ele começou a regredir no seu desenvolvimento, adotando outras formas de se comunicar, como apontar, gritar, puxar pela mão de quem estava por perto. “Em muitos momentos, ele  não atendia quando a gente o chamava e então ele se isolava, brincava sozinho, não estabelecia contato com ninguém”, relembra o casal.

A CAA foi introduzida na vida do pequeno em 2017, de forma muito superficial na escola, mesmo a família não tendo conhecimento do que efetivamente era a CAA. “Hoje, depois de buscar informação através de leituras, redes sociais, cursos, conversas com profissionais da área, pais que aplicam a CAA e tem  muitos resultados, começamos a implementar no final de 2019 em casa. Tínhamos os sites, as imagens, o computador, a impressora, a plastificadora e, dessa forma, partimos com a cara e a coragem”, explica Rui.

Shirley diz que antes da CAA, João era uma criança muito limitada em relação à comunicação, porque não tinha como se expressar e, com isso, vinham as crises, birras, frustrações. “E tudo mais que uma pessoa pode sentir quando não se tem a oportunidade de dizer o que tem vontade, o que não queria, o que pensava e o que sentia. Por isso, a CAA mudou a vida do João e da nossa família, pois agora ele pode dizer suas preferências e seus sentimentos. Com isso as crises diminuíram consideravelmente, melhorando a convivência escolar, como também nossas saídas a centros comerciais, parques e igreja. A CAA foi um salto na qualidade de vida de todos nós”, enfatiza.

De acordo com Rui, hoje o João utiliza a CAA em baixa, média e atualmente está no processo de introdução da alta tecnologia. No instagram criado pela família @autismouniversal, Shirley conta que foi a forma de compartilhar as informações sobre o autismo e como eles lidam com a questão. “A partir do diagnóstico do João nos vimos obrigados a uma mudança radical de planejamento familiar e à medida que fomos avançando, descobrimos que estávamos em um universo de desafios, de aprendizado e de muitas possibilidades. Para nós, o autismo é um universo a ser explorado. E no início, a intenção era de informar aos nossos amigos e familiares um pouco da realidade que vivemos com um filho dentro do espectro, mas com o passar do tempo, chegaram outras famílias e profissionais que não conhecemos, fazendo comentários, perguntas. Gente buscando informação e orientação e então entendemos que devíamos seguir compartilhando nossas experiências para ajudar outras famílias”, explica.

Quem acompanha o perfil nas redes sociais pode notar o capricho da família na confecção das pranchas de comunicação e nos livros com os pictogramas, feito a quatro mãos (pelos pais de João). “Quanto aos materiais que elaboramos, temos muitas fontes de pesquisas e inspiração, principalmente nas redes sociais, páginas especializadas, mas, claro, de acordo com as prioridades, necessidades e desafios que João nos apresenta”, diz Shirley. 

A família, mesmo residindo no Chile, conta com o apoio da fonoaudióloga Valéria, que faz os atendimentos de forma on-line. “Os atendimentos com a fonoaudióloga Valéria representam um divisor de águas na nossa jornada com a CAA. Através das suas orientações e informações, aplicamos com o João e é nítido o seu avanço. Antes do atendimento com ela, tínhamos resultados, mas com a chegada dessa profissional preparadíssima, os avanços foram maiores em muito pouco tempo”, elogia o casal, que diz que João estava no nível 3 de suporte, mas hoje está avançando para o 2. “O nosso trabalho intenso é para que ele siga avançando e o nosso desafio diário é contribuir para que ele tenha uma vida mais autônoma possível. Não tem sido uma tarefa fácil, mas seguimos firmes, fazendo a nossa parte com muito carinho, respeito, dedicação, paciência e amor”, diz Shirley, que conta ainda que João tem como marca registrada a alegria e o sorriso fácil. “Ele ama ir à escola e às terapias. Atualmente ele recebe intervenção de fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicopedagogo”, explica Rui. 

Shirley diz ainda que uma das coisas importantes que as famílias devem sempre se atentar é de reservarem um tempo para o casal. “Ter um filho com necessidades especiais, a depender do nível de suporte, exige muito tempo e dedicação dos pais. Muitas vezes, não sabemos como lidar com essa situação e corremos o risco de nos perder de vista como casal. Na nossa experiência, vivemos situações de estresse, dor, dúvidas, medos, incertezas; realidades que acreditamos ser uma constante na vida de pais atípicos, que se vêem consumidos pela demanda a que são submetidos diariamente e isso gera um desgaste emocional gigantesco. Diante disso, nos vimos tão afetados e decidimos que era hora de buscar ajuda de profissionais como psiquiatra, tivemos que tomar remédio, psicólogo e apoio espiritual, porque necessitávamos estar bem para cuidar do relacionamento e também da nossa família. Assim, tomamos a decisão de estabelecer nosso tempo, nosso espaço e até já conseguimos sair algumas vezes a dois, ainda que tenha sido a um pub que está a 700 metros de casa, por duas horas, tendo como rede de apoio, nosso filho mais velho Noah, de 13 anos, nossos dois gatos e os porteiros do prédio que vibraram com a nossa saída e também são avisados para onde vamos. Esses momentos, por menores que sejam, fazem toda a diferença”, ressalta.

Noah, Shirley, João e Ruy Lima – arquivo pessoal (Instagram)

Quanto ao Dia Mundial de Conscientização do Autismo, o casal diz: “Queremos nesta data tão importante, deixar uma mensagem para todos aqueles que vivem o autismo 24 horas por dia, 7 dias por semana, principalmente para os pais, que o autismo, apesar de ser extremamente desafiador, não é o final da vida, do casamento, dos projetos e sonhos, mas representa uma mudança radical na maneira de encarar a existência. Para todos aqueles que acabaram de desembarcar no universo do autismo e aos outros tantos que ainda estão em vôo: não se percam de vista, cuidem de seu relacionamento, unam forças para seguir esta caminhada e, como diz as palavras do sábio, que adotamos como fonte de inspiração para as nossas vidas, ‘…é melhor serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante.’ (Eclesiates 4.9-10)”.

Mãe atípica: autista e com TDAH, mãe de gêmeas autistas

Sabrina Nascimento, do perfil no Instagram @uma.autista.diferentona, é mãe de gêmeas autistas, 5 anos e nível de suporte entre 2 e 3. Ela foi diagnosticada também dentro do espectro, juntamente com TDAH somente um tempo após o diagnóstico das filhas, quando tinham 1 ano e 6 meses. “Meu diagnóstico veio aos 37 anos através de uma avaliação neuropsicológica, no qual obtive a confirmação de ambos ao mesmo tempo: autismo e TDAH. Eu já fazia acompanhamento médico e psicológico. A psicóloga que me atendia acolheu a suspeita e, assim, começou minha caminhada. Primeiramente fui a uma neurologista que sugeriu a avaliação neuropsicológica. Depois de vários testes e com relatório em mãos, o psiquiatra me deu o laudo”, explica Sabrina, que é nível 1 de suporte.

A mãe atípica é ativista nas redes sociais e luta pela inclusão não apenas do autismo ou de pessoas com TDAH, mas também dos direitos iguais a todos, principalmente das pessoas pretas. “Eu já tinha meu Instagram onde postava coisas do meu cotidiano ou fotos minhas e de minhas filhas. Uns dois anos após o diagnóstico delas, comecei a fazer publicações sobre o autismo. A interseção com gênero, raça e classe surge a partir das minhas vivências enquanto mulher preta e do diálogo com outras pessoas negras autistas que fui conhecendo na internet. Com o tempo, fui recebendo muitas mensagens de pessoas negras que se identificavam comigo e também estavam em busca do seu diagnóstico. Mas não é difícil perceber o alcance que autistas brancos têm no Instagram, por exemplo, em relação aos não brancos”, enfatiza Sabrina, que é mestranda em educação e tem especialização em deficiências múltiplas e sensoriais, além de pós-graduanda em metodologias ativas.

“Como professora efetiva da rede municipal de educação de Salvador, penso em pedir remoção para atuar no atendimento educacional especializado (AEE)”, diz.

Sabrina também fala sobre como lida com a rotina diária, uma vez que trabalha e tem que cuidar das meninas, além de estar à frente da luta pelos negros autistas em seu canal no Instagram: “Com muita correria e sempre deixando as coisas não tão bem feitas. Conto com a ajuda de familiares. Além disso, conquistei na justiça minha redução de jornada de trabalho”, explica. 
A influencer diz ainda que já recebeu muitas críticas por meio do seu canal. “Inclusive já fui chamada de “esse tipo de gente” por um vereador. Eu toco em questões desagradáveis para alguns dentro da comunidade do autismo. Mas não recuo, sigo, discutindo sobre as coisas a partir do meu ponto de vista. E meu ponto de vista é atravessado por gênero, raça, classe e deficiência”.

Sabrina Nascimento – arquivo pessoal (Instagram)

Pelo Dia de Conscientização do Autismo, Sabrina deixa a mensagem à sociedade: “Inclusão não é favor!”. Às pessoas que acabaram de receber o diagnóstico de autismo, ela diz: “Com o tempo as coisas irão se ajeitar. Sempre é melhor o diagnóstico que o limbo da dúvida”.

Quando a perseverança e o amor vencem

Para a médica Patrícia Hailer, o mês de Abril não é apenas importante por conta do Dia Mundial de Conscientização do Autismo, mas porque no dia 15 o seu filho mais novo, Arthur, completará 8 anos de idade. 

Diagnosticado com cavernomas múltiplos há cinco anos, Arthur recebeu a confirmação de estar dentro do espectro apenas meses depois. “Eu comecei com suspeita de autismo do Tutu quando ele estava com uns oito meses. Sabíamos que tinha alguma coisa errada e, pra mim, já era o diagnóstico de autismo. Tivemos que fazer uma infinidade de exames, até ressonância magnética, consultar vários profissionais de diversas especialidades que você possa imaginar, como foniatra, entre muitos outros, além de participar de projetos de TEA, mas ninguém fechava o diagnóstico, que veio de forma tardia e, por conta desse atraso, acabou atrapalhando no tratamento e no desenvolvimento dele”, explica Patrícia, que diz que, por precisar de muito suporte, ele é nível 3.

“Mas temos muita fé que ele vai ganhar autonomia e independência, pois estamos totalmente dedicados para que isso aconteça. Tudo o que estamos fazendo está dando resultados e esperamos que um dia ele chegará no nível um de suporte”, explica a médica. Para isso, Patrícia conta com a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), implantada em 2020. “Depois de um ano mais ou menos da implementação, o Tutu já estava falando e formando frases simples. Lembrando que quando iniciamos o uso da CAA, ele não sabia dizer sim ou não de uma forma coerente e emitia alguns sons parecidos com as palavras, como banana, por exemplo, mas ele não sabia associar o significado daquela palavra com a fruta. E então foi a doutora Gracielle R. Cunha Asevedo, da UNIFESP, que temos muito a agradecê-la, que foi quem sugeriu que a gente procurasse a CAA”, explica a médica, que relata que era muito desafiadora a comunicação com o Arthur antes de conhecer a CAA. 

“Ele tinha muito comportamento inadequado por conta da dificuldade de se comunicar. Era bem difícil, ele se jogava muito no chão e com o CAA mudou muito, como ajudá-lo a falar o que ele não queria. Ou seja, ele não tinha nenhuma das funções comunicativas de falar sim ou não, de recusar, de aceitar, de comentar, entre outros. Então tínhamos que ficar adivinhando. Por conta de tudo isso, fui fazer diversos cursos de CAA, porque ela veio ao encontro de uma visão ampla e humana que a gente tem de se comunicar com o Tutu. E não é uma coisa robótica, só de pergunta e resposta; há muita troca durante a comunicação que a gente precisa ter, que é de sentir a outra pessoa para se comunicar e isso envolve muitas coisas. A CAA permite tudo isso, porque é algo alinhado com o que a gente queria: uma abordagem mais ampla, natural, humana”, ressalta Patrícia.

Com os cursos e especializações em CAA, a médica conta que um dos grandes aprendizados que teve com os anos de dedicação ao estudo da Comunicação Alternativa foi o de presumir competência. “O que foi maravilhoso, porque sempre acreditamos que o Arthur podia ir muito mais e além, que ele tinha muito mais a comunicar do que conseguia. Passamos a trabalhar a motivação, porque percebemos que para que haja a comunicação é preciso estar motivado. E uma das maiores motivações do Tutu são letras e números, sendo que antes ele não tinha interesse por nada e não interagia nem com a família. Mas aí aprendemos com a CAA a motivá-lo, a falar as coisas que ele se interessa e de uma forma natural, sem ser obrigação. Os estudos me mostraram a importância do tempo de espera e desenvolvimento de linguagem para ele processar a informação e, assim, haver a troca comunicativa, pois, muitas vezes, a ansiedade é nossa, esperamos uma comunicação imediata, mas precisamos respeitar o tempo de processamento deles para nos dar uma resposta. Eles podem ter um certo “delay” para nos responder e devemos respeitar. Assim seremos bons parceiros de comunicação”, explica Patrícia.

Ela diz ainda que a família utiliza a comunicação multimodal, que é usar todas as formas de comunicação, não apenas os pictogramas, como a linguagem de sinais. “Ou seja, nós damos a voz pra ele e ele fala espontaneamente, pensa e expressa o que ele está sentindo ali, no coração, na alma dele”, explica.  Patrícia diz também que o início da adaptação foi algo desafiador. “No começo dava um desânimo, parecia que não ia dar em nada, porque ele não sabia dizer nem o “sim ou não” com uma coerência. Ele não tinha noção do que significavam as palavras, falava por falar de qualquer jeito, qualquer contexto, ora porque ele achava bonitinho, ora achava engraçado e a comunicação não tinha função nenhuma para ele. Mas persistimos com o apoio da fonoaudióloga que estava implementando a CAA com a gente e foi maravilhoso. O apoio e todo o suporte que recebemos para implementá-la foi fundamental para que os resultados positivos fossem aparecendo. E, claro, exige bastante dedicação, precisamos ter tempo pra entender, pra estudar, praticar, se habituar a mostrar e apontar os pictogramas. É desafiador aprender um novo hábito, mas é um direito que eles têm de se comunicar e nós, pais, precisamos dar a eles a própria voz. Ou seja, nós precisamos ir atrás do suporte mais adequado para quem tem necessidades complexas de comunicação e a tecnologia assistiva está aí para isso. E com a CAA, o Arthur começou a se sentir mais validado, respeitado e amado e tudo foi melhorando, assim como os comportamentos inadequados foram reduzindo cada vez mais, afinal, nós passamos a dar voz pra ele falar o que não quer ou quer. Mas, claro, às vezes não é só do jeito que ele quer, então negociamos como com qualquer criança. Mas o mais importante é ele se sentir ouvido e respeitado. Por isso eu falo que a CAA transformou a nossa vida!”.

Patrícia diz ainda sobre a importância de ter à disposição recursos que facilitem a rotina dos autistas. “Quando o Tutu ficava mais agitado, ele tinha dificuldades para digitar, porque ele queria apertar uma tecla, mas acabava apertando outra também. Então comprei um teclado adaptado com colmeia, que o ajudou muito nesse processo de alfabetização. A digitação acaba sendo mais fácil pra ele do que escrever, porque envolve muita coisa, como coordenação, que, para ele, é algo complexo”

Quanto à antecipação da rotina, Patrícia diz que utilizava o calendário, mas com a evolução com a CAA, ela apenas escreve, porque ele já sabe ler e sabe o que que significa. “Com tudo isso, todos esses aprendizados, ele já teve muitas mudanças e a nossa vida está ficando mais simples”, relata.

Preparada pela vida

À frente do canal no Instagram @soulautista.arthur/, Patrícia cursou, antes do nascimento do Arthur, medicina, comunicação social e psicologia e, por conta disso, diz que a vida foi brincalhona com ela porque estava preparando-a para ser mãe de um autista. “O coração do autismo é essa questão da comunicação e eu fiz faculdade de comunicação social e depois fui ser médica, não é bárbaro?”, enfatiza. 

De família simples e humilde, Patrícia conta que a trajetória acadêmica da sua vida foi sendo direcionada por conta dos desafios profissionais, como o curso de psicologia, que não foi concluído por necessidade de se capacitar em outra área devido às oportunidades que estavam se abrindo na empresa em que trabalhava na época. Por isso, acabou largando a faculdade de psicologia para ingressar em comunicação social.

Mesmo formada na área, Patrícia, porém, teve seus sonhos de ser médica reativados após o nascimento do seu primogênito Lucca. “A maternidade me despertou uma motivação, uma coragem inexplicável e então decidi, com apoio do meu marido, a lutar pelo meu sonho de cursar medicina e assim fiz”, relembra a médica. 

“Mas não foi nada fácil, ainda mais com um recém-nascido. Então,  eu fui  trabalhar no cursinho pra poder ganhar bolsa de estudos em troca de salário e, assim, me preparar para os vestibulares. No total eu fiz pelo menos aí uns cinco anos de cursinho para conseguir entrar na faculdade de medicina. Foi com muita luta e dificuldades, ainda mais porque eu sempre tinha estudado em escola pública. Mas, com todo o apoio do meu marido, consegui realizar o meu sonho”, diz Patrícia, que atuou em diversas áreas, como medicina do trabalho, em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e cursou uma especialização na UNIFESP no departamento de ortopedia. Ela fez ainda medicina tradicional chinesa, acupuntura e planejava fazer residência médica, quando engravidou do Tutu. “Como aos oito meses eu já comecei a perceber que tinha alguma coisa diferente com ele, interrompi o planejamento profissional  e comecei a me especializar em TEA; fiz pós-graduação em autismo e outra pós no método Denver, que fez toda a diferença na vida do Arthur. Fiz também coach parental, curso de manejo de comportamentos inadequados e de inteligência emocional, programação neurolinguística, entre outros”, explica a médica.

Patrícia diz ainda que pelo fato do Arthur ser nível 3 de suporte, ela teve que abrir mão de trabalhar para se dedicar integralmente a ele, aplicando todo o conhecimento adquirido nas três áreas acadêmicas e nos cursos. “Além do que, o Tutu é de risco por ter cavernomas múltiplos, que confere o risco de sangramento”, diz. 

Ela relata ainda que quando o Tutu estiver com mais autonomia e independência, ela planeja voltar à área da psicologia. “Ou talvez psiquiatria, ainda estou vendo. No momento o foco continua sendo o Tutu para que ele se desenvolva mais, bem como suas habilidades”

Ela ressalta ainda a importância dos pais não largarem o autocuidado e, por isso, procura fazer meditação todo dia, de manhã, antes que o Arthur acorde. “Para conseguir ter um dia mais equilibrado, que não é fácil para quem é mãe de autista. Tem eu, meu marido e o Lucca, hoje com 20 anos. A gente fala que nós três não conseguimos dar conta do Tutu, porque são muitas demandas, mesmo ele sendo bonzinho, bem humorado e brincalhão. Mas ele tem apraxia, dificuldades motoras, muitas alterações sensoriais, como dificuldades com as questões do banheiro: de segurar, de sentir o xixi, sentir o cocô, além de sentir frio, calor, fome e sede”, conta Patrícia, que criou o canal no Instagram como forma de apoiar outras mães autistas e trocar informação com quem tem interesse. 

Nas redes sociais, ela compartilha ainda as técnicas utilizadas pela família durante o dia, bem como dicas que utiliza para tranquilizar Tutu nos dias em que está muito agitado, como uma massagem específica que a família aprendeu com uma terapeuta ocupacional. “Outra técnica é um abraço onde contamos 30 segundos com uma respiração mais tranquila, que ajuda a acalmá-lo muito também. Mas é importante que cada família encontre uma técnica que possa utilizar em público para utilizar nos momentos em que a criança está mais agitada. Outra questão  importante é que todos os familiares se envolvam e tenham interesse em ajudar um ao outro, principalmente nas atividades de interação com o autista”, aconselha Patrícia. Ela complementa: “O que mais sinto necessidade é de ensiná-lo a perceber ele mesmo, como qual é o estado de alerta dele, o quanto ele está agitado, o que ele está sentindo. E isso tudo eu faço com o sistema de comunicação alternativa. O grau de alerta e de agitação dele eu acho muito importante como autoconhecimento para ele”, explica a médica. 

A família trabalha muito a questão da previsibilidade com o Arthur e também utiliza as pranchas de comunicação sempre em locais públicos, além de mantê-las espalhadas pela casa, que Patrícia posta no canal para incentivar e inspirar outras famílias. “A nossa ideia é ter essa troca de experiência com as famílias e também ajudar as pessoas a exercitarem empatia, como se colocar um pouco mais no lugar da nossa família, do Tutu. Além disso, queremos romper os preconceitos, porque as pessoas criam mitos. Mas cada autista é muito único e o Tutu rompe com vários desses preconceitos que as pessoas costumam ter, porque ele é muito amoroso, alegre, brincalhão, todo carismático, cativante e é um amor de pessoa. Acho que a gente pode mostrar pro mundo um outro jeito de ser e ele tem muitos stims, que eu acho que isso é uma das coisas que as pessoas precisam aceitar mais numa boa, afinal, as estereotipias para eles os ajudam muito a regularem as emoções”, encanta-se a mãe, ao mencionar que o Tutu consegue falar o alfabeto de trás pra frente. “Ele tem um fascínio tão grande pelas letras que ele sabe falar com uma naturalidade o alfabeto de trás pra frente que eu mesma não consigo! Olha como é fascinante o cérebro deles, o jeito que eles enxergam o mundo é completamente diferente, eu acho que a gente tem é que aprender e abrir o nosso coração para eles”, aconselha Patrícia.

Patricia, Lucca, Arthur, Mario – arquivo pessoal (Instagram)

Como mensagem às famílias, por conta do mês de Conscientização do Autismo, Patrícia deixa a seguinte mensagem: “A família de alguém com autismo precisa ter 3 Ps: paciência, persistência e presumir competência. São palavras mágicas porque as famílias também precisam encarar e aceitar os seus autistas do jeitinho que eles são. Outra palavra importante é a aceitação: aceitar o quanto antes e correr atrás de tudo que for possível para ajudar a pessoa com autismo para facilitar a sua vida, encarando todas as oportunidades e todos os desafios que surgem na vida; uma  oportunidade de exercitar muitas qualidades, como amor incondicional, empatia. E que as famílias continuem buscando informações. A gente precisa fazer cursos, pesquisar informações com pessoas que são referência para ajudar o nosso autista, porque cada um é único e vai ter uma necessidade. Além disso, precisamos ir atrás dos direitos aos benefícios, conversar com outras famílias e buscar apoio. Afinal, é comum as pessoas ficarem falando que a gente é escolhida por Deus, guerreiras, mães especiais, super-heroínas e esse romantismo todo acaba nos deixando muito solitária. Mas a gente é ser humano como qualquer um e precisamos de ajuda, de um colo, chorar de vez em quando, porque vivemos em uma  montanha-russa de emoções e é extremamente desafiador para nós. Outro alerta é que as famílias tenham consciência de não deixarem de lado seus maridos e os outros filhos, neurotípicos. E, assim como no avião nos ensinam a colocar primeiro a máscara de oxigênio em nós para depois ajudarmos o outro, precisamos aplicar em nossa vida. Buscar um equilíbrio maior também na espiritualidade (dentro da crença de cada um), porque a vida testa e precisamos ter alguma conexão com algo maior, seja por meio de uma oração, uma meditação pela manhã, uma atividade física, um autocuidado todos os dias, porque se a gente não estiver um pouco mais organizada, equilibrada, o nosso filho não vai conseguir se desenvolver tão bem”, aconselha Patrícia.

Redação Civiam

Entrevistas, histórias reais e conteúdo sobre diversos aspectos ligados às Tecnologias Assistivas e à educação na saúde.

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