A Secretaria da Educação da prefeitura de Campinas tem se tornado referência nacional quando o assunto é inclusão escolar, como abordamos na matéria: Inclusão escolar em Campinas: a importância dos recursos adequados no apoio ao desenvolvimento dos alunos e ao trabalho dos professores. Por meio das Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), que disponibilizam materiais e equipamentos de tecnologia assistiva, os estudantes com deficiência e altas habilidades têm tido a oportunidade de se desenvolverem de maneira surpreendente – graças, claro, ao trabalho incrível de professores de Educação Inclusiva à frente das 35 SRMs de Campinas.
Por isso, dando continuidade às histórias inspiradoras de inclusão nas escolas do município, compartilhamos o trabalho de mais uma professora de Educação Especial, Aline Caetano Begossi, que atua há 10 anos na SRM Agostinho Páttaro (@srmagostinho), e vem se tornando referência em desenvolvimento de materiais adaptados inspiradores de baixa tecnologia com a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA). E, assim, vem proporcionando a inclusão não apenas na sala de recursos, mas em todos os ambientes escolares: ela produziu banners de CAA para os parques da escola, além de pranchas de comunicação em cartões, distribuídos por toda a escola: “Todas as salas têm as pranchas de rotina e todos os locais da escola, como cantina e banheiros, também dispõem não apenas da CAA em pictogramas, mas também em libras”, salienta. Ela complementa: “Uma aluna falou para a professora que o cartão do passo a passo do banheiro estava errado, porque não tinha o pictograma de jogar o papel no lixo”, destaca Aline ao ressaltar que essa é a verdadeira inclusão, quando todos pensam em detalhes que farão a diferença ao colega com deficiência.
A especialista elabora ainda cadernos de CAA personalizados a cada estudante, que são plastificados e têm argolas para adição de pranchas de comunicação, além de alça de ombro: “Cada criança é um universo, ela tem o contexto de vida dela, familiar, terapias e a escola. Então todo recurso elaborado na SRM precisa ir pra vida dela, não pode ser usado apenas no atendimento, afinal, o trabalho da sala de recursos é pensar na acessibilidade no contexto de vida dessa criança e não apenas no escolar. Por isso, é preciso ainda lembrar das pessoas que estão no entorno da criança, que também precisam ter conhecimento sobre o recurso. A CAA é contextual, se ela não circular na escola e nos diversos ambientes onde essa criança frequenta, não tem contexto de comunicação. Ou seja, se o aluno faz uso dos pictogramas, eu preciso que o professor e família também tenham conhecimentos sobre a CAA para fazer sentido a comunicação do estudante. Por isso, é preciso que a CAA esteja em tudo: no caderno, no tablet, no parque, na sala de aula, no refeitório, no banheiro, em casa. Ressalto sempre que a produção de recursos de CAA vai muito além da adaptação de materiais da sala de aula”, diz Aline.
Para dar mais funcionalidade ainda ao material, a professora de Educação Especial explica que os cadernos de CAA têm o nome e a foto do estudante e traz informações, em pictogramas ou em fotos, sobre a sua vida, como familiares, o que gosta, comidas preferidas, entre outros. “Assim, cada caderno tem a sua função real de proporcionar a comunicação dessa criança em todo lugar que ela for. Ressaltando que para elaborar o caderno de cada aluno da SRM, eu preciso da colaboração dos pais no envio das fotos da rotina da criança, como o seu quarto; e informações sobre suas preferências, as pessoas com quem convive. Claro que é um material que demanda tempo para ser elaborado, porque é preciso conhecer a fundo o universo do aluno. E quando recebo a solicitação de um novo caderno porque o do aluno está danificado, eu comemoro, porque significa que o recurso está sendo realmente utilizado”, diz Aline.
A especialista cita ainda que um ponto fundamental a quem trabalha com a elaboração de recursos de CAA é observar ideias que sirvam de inspiração: “Em uma reunião em São Paulo, na Civiam, vi a pulseira retrátil de CAA. Confeccionei em um modelo mais simples, com velcro, e sempre mantenho impressas em torno de 100 unidades na SRM para quem precisar. Apesar de parecer um recurso simples, é bastante eficiente: uma mãe relatou que em um jantar com amigos e com o filho, que estava usando a pulseira, este expressou, pela primeira vez, por meio dos pictogramas, que já estava cansado e queria ir embora. Essa mãe ficou tão feliz com essa comunicação, que agora até ela utiliza a pulseira em todos os lugares”.
Aline elabora também chaveiros de CAA para comunicação rápida, com diversos conjuntos de pictogramas plastificados e presos por argolas por temas, que ficam disponíveis em todas as salas. Assim, segundo a profissional, os alunos com deficiência podem levar os temas de acordo com a necessidade: “Por exemplo, se a turma fará um passeio no teatro, os professores e os alunos podem levar apenas o conjunto de pictogramas com a temática em questão”.
A leveza e a diversão são como um lema que Aline mantém em todos os seus atendimentos, pois, segundo ela, é preciso entender que para uma criança com deficiência, a permanência na escola pode ser algo desafiador. “E, muitas vezes, é com diversão que vamos acessando até mesmo aquelas crianças que não demonstram interesse nas atividades. Aqui na sala de recursos, eu mantenho uma boneca grande, a Maria, e eles adoram! Durante os atendimentos, a Maria se ‘desregula’, chora, tem comportamentos desafiadores e, assim, vamos trabalhando com a criança essas questões que, com uma pitada lúdica, ficam mais suaves e de melhor compreensão. Além disso, quando a família relata alguma dificuldade, por exemplo, quando o aluno tem dificuldades para cortar o cabelo ou ir ao dentista, eu utilizo a Maria também para lidar com tais situações e demandas diversas e tem sido uma estratégia bastante eficiente”, destaca.
Comunicação Aumentativa e Alternativa
Em 2003, Aline Begossi entrou para a rede municipal de Campinas, como professora de Educação Especial no contexto escolar, onde atuou em diversas escolas ao longo de dez anos de carreira. Em 2013/2014 é que ela assumiu a Sala de Recursos Multifuncionais Agostinho Páttaro, quando teve também o primeiro contato com a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) ao atender uma estudante do 9º com paralisia cerebral, que utilizava a CAA por meio de uma pasta com recortes e imagens de internet. “Comecei a estudar a CAA uma situação que me marcou e me motivou a buscar cada vez mais conhecimento sobre a comunicação alternativa foi um concurso, naquele ano, da Sanasa Campinas (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A) para todas as escolas e o tema da redação era “Viver, você tem medo de que?”. Essa aluna, através de sua pasta de CAA, foi me contando um trauma que ela viveu e fomos montando toda a sua redação com os pictogramas – ela os escolhia em sua pasta e eu ia xerocando um por um, recortando-os e colando em uma folha. Ela não ganhou o concurso, mas recebeu uma menção honrosa pela qualidade da sua redação e feita com a CAA”, relembra.
A professora conta que logo após, a Secretaria da Educação de Campinas adquiriu o Boardmaker 6 (um software de CAA que traz diversos modelos de pranchas de comunicação alternativa prontos, que podem ser personalizados, além de diversas atividades com pictogramas para facilitar a rotina de educadores e terapeutas). “Passei a estudar o recurso sozinha, a fuçar e mexer para descobrir as suas possibilidades e fui me encantando! Com o passar dos anos, a demanda pelo atendimento a alunos com necessidades complexas de comunicação foi aumentando consideravelmente e, assim, fui aprendendo a fazer o uso da CAA nos atendimentos a esses estudantes”.
Aline passou a fazer uma junção de tudo o que vinha aprendendo, tanto na busca independente por conhecimento, quanto nas formações, além do vasto repertório de conhecimentos na área da música: “Eu fiz cinco anos de teclado, um de piano e um de violão, além de participar – por muitos anos – de um coral da igreja, que resultou na gravação de um CD com a temática religiosas. Fui também coordenadora por 20 anos da parte musical da igreja no ensino religioso às crianças – expertise que hoje me ajuda a ter noção dos instrumentos musicais que utilizo nos atendimentos na SRM”, explica.
Cinema e Educação
Aline pensa também a arte como fundamental, não apenas ao desenvolvimento da linguagem dos alunos com deficiência, mas, principalmente, no protagonismo desses estudantes: por conta da Lei nº 13.006/2014, que determina que as escolas de educação básica brasileiras devem exibir filmes nacionais por, no mínimo, duas horas mensais, a Secretaria de Educação de Campinas criou o Programa Cinema e Educação, em parceria com o Grupo Olho. “Assim, em 2016, formamos um grupo de educadores de universidades, professores da rede e monitores para discutirmos a temática do cinema na educação. Fiquei encantada e então busquei capacitação em quatro disciplinas na Unicamp durante quatro semestres, onde aprendi a relação entre o cinema e educação, sobre como formar cineclubes nas escolas, conversar sobre cinema com as crianças e produzir com elas os filmes.
Desde então, iniciei o trabalho de assistirmos filmes na SRM e também produzirmos, junto com as crianças, animações, documentários, filmes carta, entre outros”, diz. E ela complementa: “A potência do cinema na educação especial permite: discutirmos as imagens com as crianças com a ajuda da CAA, onde todo mundo tem algo a dizer sobre o que assistiram e ninguém ensina ninguém. As imagens trazem memórias, colocam as crianças em lugar de autoridade, resgatam vivências pessoais, trazem novos pensamentos ao instigar a formação de opinião sobre diversos temas da vida”.
Apaixonada por deixar a criatividade solta para poder criar novas possibilidades que ressaltem o protagonismo dos próprios alunos, a professora incentiva, ainda, a produção de filmes pensados e elaborados pelos alunos. “Eles que escolhem como será a animação: com desenhos, imagens, fotos, entre outros. E eu os ajudo na execução, edição e sonorização do filme”, explica. A ideia tem dado tão certo, que Aline passou a inscrever os trabalhos dos estudantes em mostras de cinema de destaque, como Trakinagem, Kino e Estudantil de Cinema. É o caso de Believer, uma animação produzida pelo aluno Victor Carlos Rodrigues Brito, juntamente com Aline, que conta a história de um menino que vira um robô e participa de uma luta. O filme foi selecionado, em 2019, na III Mostra Trakinagem, na V Mostra Kino e IX Mostra Estudantil De Cinema. Assista:
Outro caso é o filme “Trem de Ferro. Manuel Bandeira”, realizado em 2019 pela aluna Larissa Cristina Rodrigues da Silva, juntamente com Aline, na Sala de Recursos. “Tudo começou quando a aluna assistiu comigo a animação ‘O Maestro do Tempo’, feita por alunos de uma escola pública. Quando terminou, ela olhou para mim e perguntou: ‘Como eles fizeram isso? Eu também posso fazer?’ E eu respondi: Pode! Quer? E ela quis! Nesse dia, havíamos lido a poesia ‘O Trem de Ferro’, do Manoel Bandeira, que “casou” com a canção ‘O Trem Caipira’. E ela escolheu animar essa poesia. Assistimos o filme de inspiração algumas vezes para percebermos as técnicas de animação que apareciam. Então, a Larissa escolheu quais gostaria de usar em seu filme e passamos a trabalhar na produção dos quadros, desenhando e fotografando para criar o stop motion. Usamos também o zootroscópio para criar um movimento rápido do trem. Gravamos o poema tocando chocalhos e ganzás para dar o ritmo do trem à nossa poesia. E foi assim que surgiu a animação Trem de Ferro!”, explica. Confira:
A professora explica ainda como acontece o processo de produção dos filmes, como o caso do documentário ‘As Baleias’, da aluna Joana Ghidotti Celente, publicado em março de 2024: “Como ela gosta muito de baleia e está em processo de alfabetização, aproveitei o tema de interesse para desenvolver a leitura e a escrita com o Boardmaker (software de CAA), que utilizo para a criação de materiais a crianças com dificuldades de comunicação. A cada texto com a temática das baleias que líamos, eu comecei a propor que ela fizesse uma ilustração. Para que ela tivesse referência, usamos livros disponíveis na biblioteca da SRM, além de vídeos do YouTube e sites para pesquisar sobre esses mamíferos. Conforme o trabalho foi sendo realizado, perguntei se ela queria fazer um filme e expliquei que seria um documentário, como alguns que vimos no YouTube sobre as baleias. Ela aceitou e, terminado os textos e ilustrações, passamos para o processo de animar, editar, gravar a voz, os sons. O jogo ao final, de achar os sons dos animais, foi inspirado em um jogo que fiz especificamente para ela nos atendimentos na SRM. Ver o orgulho dessas crianças quando todos da sala assistem o que elas produziram é muito gratificante e um dos maiores benefícios da produção autoral desses filmes”, salienta Aline.
Confira mais filmes, animações e documentários produzidos pelos alunos da SRM com apoio da especialista, que ela compartilha em seu canal no YouTube: https://www.youtube.com/@AlineBegossi
Motivação para trabalhar com a Educação Especial
A dificuldade de aprendizagem na infância fez com que a Aline Begossi mantivesse o pensamento de que “após concluir a jornada escolar, nunca mais pisaria em uma escola”, tamanhos eram os desafios enfrentados em sua jornada escolar, ainda mais porque sua mãe também era professora da rede municipal de Campinas. Por isso, em sua mente, o seu futuro já estava traçado: cursar magistério para depois estudar psicologia infantil.
Porém, ao fazer os estágios do magistério, Aline foi descobrindo a paixão por trabalhar com crianças que eram ‘consideradas difíceis na aprendizagem’, por conta de alguma deficiência. E, então, o seu caminho profissional, antes recusado na infância, a levou a também encontrar a sua missão de vida: “Na faculdade acabei fazendo pedagogia e não psicologia. E fui me encontrando na Educação Especial ao ver a importância de um trabalho acessível e de recursos adequados no desenvolvimento dessas crianças ‘rotuladas como incapazes de aprender’. Além disso, entender que, às vezes, a desregulação de crianças com deficiência tem a ver com a falta de possibilidade comunicativa e compreensão do próprio sentimento de se expressar para o outro ou de ser compreendido, resultando em choro, bater a cabeça ou se jogar no chão, faz toda a diferença no desenvolvimento dessas crianças”, ressalta a especialista.
Diferença essa que Aline conta em diversos relatos dos atendimentos: “um aluno com pouca comunicação começou a verbalizar, por meio da ecolalia, para pedir músicas à professora, de tanto que trabalhamos a musicalidade na SRM, como uma vez que ele começou a cantar um trecho de uma canção e eu peguei a caixa de instrumentos e ele ficou muito feliz por eu ter entendido o que estava cantando. E assim ele continuou os demais trechos da música”, comemora.
A professora conta também o caso de outra aluna bem pouco verbal e que se esforçava muito para cantar ‘parabéns pra você’. “No dia do seu aniversário, ela mostrou o calendário dos aniversariantes – mostrando que era o seu dia – e pediu para cantar o ‘parabéns pra você’ e ela cantou junto, sendo que antes ela não falava nada. Nos primeiros momentos, ela sentia vergonha quando a voz dela saía, assustava com ela mesma, mas agora começou a se sentir orgulhosa de sua voz!”, emociona-se Aline.
Aos professores e educadores, a especialista deixa a seguinte mensagem: “Parceria e estudo são fundamentais e devemos sempre lembrar que quem atua na educação é um eterno estudante. Na Educação Especial, estudar se torna ainda mais fundamental, porque a todo momento surge uma nova síndrome e também novos recursos de CAA e tecnologia assistiva. Além disso, é necessário que os profissionais que lidam com alunos com deficiência conheçam o universo de cada aluno para possibilitar uma diversidade maior de estratégias que possibilitem mais repertório a esses alunos. E nunca esqueçam que essa jornada precisa ter altas doses de leveza e muita diversão – ingredientes fundamentais para que essas crianças consigam se desenvolver e, quando se tornarem adultas, possam ocupar seus espaços na sociedade”.
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