
“Tive o meu primeiro surto com 15 anos, mas, na época, não fui diagnosticada com esclerose múltipla (EM). Eu fazia o colegial e lembro que comecei a tomar remédio para labirintite, porque os sintomas iniciais pareciam ser disso. Inclusive, uma professora minha de matemática achou realmente estranho o que eu estava passando, mas, mesmo assim, não foi feito o diagnóstico correto. Dois anos depois tive uma outra crise, mais intensa, e foi quando um médico do convênio, pelos exames, me disse que já sabia o que eu tinha, mas faria exames específicos para confirmar o diagnóstico. E, assim, vieram as dormências, que começaram nas pernas, foram subindo para os braços e para o tronco, até chegar ao ponto em que, se alguém me beliscasse, eu não sentia absolutamente nada. E, então, o diagnóstico de esclerose múltipla foi confirmado aos 17 anos”, diz Giselle Pekelman, jornalista, palestrante, à frente da Revista Raros (digital) e também do podcast Profissão Mundo (juntamente com Renato Lopes, quem fundou o programa).
Ela destaca ainda a falta de informação sobre EM na época do diagnóstico: “O lado positivo de não ter a quantidade de informação que existe hoje é que, na minha época, eu não fui influenciada por relatos ou por uma enxurrada de conteúdos dizendo o que eu poderia ou não sentir. Hoje, com essa onda de influenciadores, eu acho que a situação é muito complicada, porque você acaba sendo influenciado a ter sintomas que, muitas vezes, você nem tem. Você lê ou ouve alguém dizendo que sente determinada coisa e, de alguma forma, começa a perceber ou até a criar aquilo em você. E eu não tive isso. Hoje o diagnóstico é muito mais aberto, é possível discutir abertamente com outras pessoas, compartilhar experiências, buscar apoio. Na minha época, o que existia era um prognóstico muito fechado, muito ruim, com uma visão muito negativa da doença. Era quase como uma sentença: de que você iria ficar imóvel, de que possivelmente iria morrer. Atualmente, esse diálogo é mais amplo, mais positivo, com muito mais possibilidades, tratamentos e perspectivas. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ter um cuidado enorme com o excesso de informações, que muitas vezes geram ansiedade, medo, confusão ou autodiagnósticos precipitadamente”, salienta sobre a importância das pessoas filtrarem o conteúdo que consomem e a necessidade de buscar fontes confiáveis, além da compreensão de que cada caso é único. “Informação é essencial, mas o excesso e a má interpretação podem ser tão prejudiciais quanto a falta dela”, alerta a jornalista.
Neste ano, Giselle completa 30 anos de diagnóstico e mostra que é possível continuar lutando pelos objetivos traçados e, mais do que isso, realizá-los! Mesmo tendo recebido o diagnóstico de EM na adolescência, ela seguiu para a Califórnia (EUA), onde morou por 17 anos: “Minha decisão de mudar foi motivada por um desejo muito claro: melhorar o meu inglês, crescer profissionalmente e ampliar minhas experiências de vida. Embora eu já tivesse o diagnóstico de esclerose múltipla, naquela época a doença estava totalmente estável e eu não precisava pensar muito nela. Seguia meu tratamento, sim, mas não era o foco principal da minha vida. Foi um período em que a esclerose ficou em segundo plano, o que me permitiu viver intensamente todas as oportunidades que surgiram. Durante esse tempo, passei por diferentes fases, desde a adaptação inicial até alcançar uma estabilidade profissional importante. Foi uma experiência que me fortaleceu muito, não apenas como jornalista, mas como pessoa”, relembra.
Giselle cita ainda a diferença cultural entre o Brasil e os Estados Unidos quanto ao conhecimento da população sobre as doenças raras, como a EM, e, principalmente em relação ao ‘lidar com a questão’: “Nos Estados Unidos, quando alguém me perguntava o que eu tinha e eu respondia que era esclerose múltipla, a reação era tranquila, porque todo mundo sabia do que eu estava falando. Lidar com a deficiência no Brasil é muito difícil, não só pela falta de estrutura, mas também pela forma como as pessoas a encaram. Muitas vezes não se fala sobre isso, e quando se fala, não é com a naturalidade que deveria. Além disso, a falta de informação sobre a doença cria muitos desafios no dia a dia, tanto nos aspectos práticos quanto emocionais”, destaca Giselle, que está prestes a completar três anos de retorno ao país.
“Depois de tanto tempo fora, retornar ao Brasil foi um processo bastante desafiador. Não só por voltar com um diagnóstico de esclerose múltipla, mas principalmente porque, ao contrário de quando fui, agora a doença é visível, o que muda completamente a forma como as pessoas me olham. Portanto, foi, sem dúvida, um processo de readaptação muito profundo, não só ao país, mas também a uma nova versão de mim mesma, com todas as transformações que vivi nesses anos fora. Até mesmo as minhas relações mudaram. Percebi que algumas pessoas não souberam lidar com esse meu retorno, e isso também foi um choque”, salienta.
Antifragilidade
E foi nesse processo de readaptação que vivenciou ao retornar ao país, que Giselle identificou a questão da antifragilidade que, segundo ela, trata-se de um conceito de não só resistir às dificuldades, mas se fortalecer através delas, transformando desafios em crescimento pessoal. Por isso, hoje ela menciona a temática em seu instagram e também nas entrevistas das quais participa: “Ao longo desses 30 anos de diagnóstico, acredito que a minha principal autodescoberta foi entender que a esclerose múltipla nunca determinou os meus limites. Ela me forçou a desenvolver a antifragilidade, que é a capacidade enorme de adaptação, de reinvenção e, acima de tudo, de autonomia. Quando decidi morar fora do Brasil, precisei aprender a lidar sozinha com a doença, administrar meu tratamento, enfrentar desafios sem a estrutura familiar tradicional e, muitas vezes, sem uma rede de apoio direta. Isso me ensinou que eu era muito mais forte e capaz do que imaginava”, destaca.

Para ela, o diagnóstico a impulsionou a mudar de áreas profissionais, sair do jornalismo tradicional, atuar no entretenimento, trabalhar com imóveis de luxo, cursar um MBA (Master of Business Administration) e se reinventar constantemente. “O diagnóstico não é um fim, mas pode ser um ponto de partida para o crescimento, para a transformação pessoal e profissional. Ao longo desses anos, aprendi que não se trata de resistir à adversidade, mas usá-la como combustível para crescer, me desenvolver e construir uma vida que faz sentido para mim”.
Revista Raros

Com o propósito de dar voz e visibilidade às pessoas com doenças raras e também disponibilizar um conteúdo acessível e humanizado, além de entrevistas e relatos inspiradores, surgiu, em 2024, a Revista Raros. Giselle Pekelman foi convidada a participar e ser a capa da segunda edição: “E, nessa aproximação com a equipe responsável, ficou claro que havia a necessidade de alguém com experiência em jornalismo e produção editorial e, então, comecei a promover mudanças significativas na Raros, usando toda a bagagem que já tinha com jornalismo, entrevistas e produção de conteúdo. O projeto foi crescendo até que, quando estava para completar quase um ano, assumi a Raros sozinha e fiz uma transformação muito importante, levando-a para o digital e, assim, ampliei seu alcance, além de dar mais voz para outras doenças raras, não apenas à esclerose múltipla, que até então era o foco praticamente exclusivo da revista. Hoje, a Raros é um espaço aberto e diverso, que fala sobre muitas condições raras e dá visibilidade para histórias que precisam ser contadas e, principalmente, ouvidas”, salienta.
Ao perceber também a importância da acessibilidade da informação, a jornalista disponibilizou a revista no Spotify, para que as pessoas possam escutá-la e acessar a informação de uma maneira mais inclusiva. “A Raros acabou se transformando, para mim, naquilo que eu nunca tive lá atrás. Sempre digo que, na minha época, não existia praticamente nada, e que hoje, apesar de haver muita coisa, o que pode inclusive confundir e atrapalhar, seria muito importante que alguém encontrasse na Raros uma porta de entrada. Que visse outras pessoas vivendo com esclerose múltipla e outras doenças, levando uma vida possível, e não aquela visão limitada de que o diagnóstico é um fim, que sua vida será necessariamente restrita, que a partir do momento que você tem um diagnóstico, você passa a ser apenas uma pessoa com deficiência, cercada de obstáculos”, diz.
Para ela, a Raros também é um grande exemplo de que as pessoas podem ter esclerose múltipla ou até mesmo outra deficiência e ainda assim assumir desafios, ir atrás dos seus objetivos e mostrar que é possível realizar projetos importantes, se reinventar e impactar outras pessoas. “Eu tenho as minhas limitações, hoje em dia tenho as minhas deficiências também, mas não foi isso que me impediu de assumir um desafio como a Raros. Pelo contrário, foi justamente a partir dessa vivência que encontrei força para transformar a minha experiência em um projeto que hoje impacta tantas pessoas”, ressalta.
Giselle conta com apoio de Renato Lopes, que conheceu um ano após ter retornado ao Brasil: “Ele surgiu em um momento em que várias pessoas me sugeriram transformar a minha experiência em algo profissional, como palestrante. Foi a partir dessas conversas que nos conhecemos e, com o tempo, ele se tornou um grande parceiro, tanto no podcast da Raros quanto em outros projetos que seguimos desenvolvendo juntos”, ressalta a jornalista, que complementa: ”Sempre estive aberta a discutir ideias, parcerias e formas de fortalecer esse trabalho, que nasceu da minha própria experiência e hoje alcança tantas pessoas. Esses espaços seguem disponíveis para quem quiser somar, contribuir ou construir algo junto, sempre com responsabilidade e propósito”.
Ela destaca ainda a importância de ouvir o público, principalmente a comunidade de pessoas com EM e demais doenças raras. “Sempre fico atenta ao que está sendo dito, ao que não está sendo dito, às demandas e às lacunas. Até porque, queira ou não, eu tenho esclerose múltipla há mais tempo do que eu não tenho. Muitas vezes, há mais tempo até do que muita gente tem de idade. Isso me dá uma visão que me permite entender as confusões, as dificuldades, tanto de quem foi recém-diagnosticado quanto de quem já vive há mais tempo com a doença”.
No Dia Mundial da Esclerose Múltipla, celebrado dia 30/5, Giselle deixa a seguinte mensagem: “Mais do que um dia no calendário, falar sobre esclerose múltipla precisa fazer parte do cotidiano. Não apenas para quem vive com a doença, mas principalmente para quem nunca ouviu falar. Informação não muda o diagnóstico de ninguém, mas muda o olhar, muda o tratamento, muda as oportunidades. O que eu gostaria mesmo é que, aqui no Brasil, fosse tão natural quanto era nos Estados Unidos. Alguém me perguntava o que eu tinha, eu dizia esclerose múltipla e a conversa continuava, porque a pessoa sabia o que era. Aqui, muitas vezes, ainda vem o silêncio, o estranhamento, o preconceito disfarçado de curiosidade. E, para quem acabou de receber o diagnóstico, o que eu diria é: nem todo mundo vai entender. Nem todo mundo vai saber o que dizer. Mas você vai entender. Com o tempo, com a vivência, com as escolhas que você fizer a partir daqui. E isso vai ser mais importante do que qualquer explicação. Além disso, você não precisa se tornar exemplo de superação, nem seguir roteiro nenhum. Mas pode sim assumir sua vida, seus projetos e fazer disso um caminho possível. Mesmo que o começo pareça confuso, é vivendo que as respostas aparecem”.
O Dia Mundial da Esclerose Múltipla tem como tema neste ano (período da campanha 2024-2025): “Meu Diagnóstico de EM”, cujo slogan é “Navegando juntos pela EM”. O foco é chamar a atenção para a necessidade do diagnóstico precoce e assertivo para as pessoas com esclerose múltipla. Estima-se que 2,8 milhões de pessoas em todo o mundo vivem atualmente com a doença, sendo cerca de 40 mil pessoas no Brasil.
Saiba mais:
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