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Ser em Cena, há 20 anos reabilitando pessoas com afasia por meio do teatro

Na foto um cadeirante careca, com barba e vestindo um terno branco com gravata borboleta preta está em um palco de teatro com um homem de pé ao seu lado vestindo um smoking preto e usando uma cartola. Do outro lado está uma mulher abaixada cochichando em seu ouvido. Ela tem cabelos longos e usa um vestido branco de bolinhas. Ao fundo uma banda com 3 senhores.
Cena do espetáculo O Grande Baile. Crédito da imagem: https://www.seremcena.org.br/

Uma viagem, em 2001, para um Congresso de  Fonoaudiologia no Canadá, onde, ao final do evento houve uma apresentação do Théatre Aphasique, coordenada por Isabelle Coté,  fonoaudióloga e atriz canadense, foi a inspiração que levou Fernanda Papaterra Limongi, também fonoaudióloga, a implementar a ideia do teatro como reabilitação de pessoas com afasia no Brasil (confira aqui a matéria que fizemos sobre afasia). “Durante a apresentação da peça, ao som da música ‘Paroles, Paroles’, de Dalida e Alan Delon (que significa “Palavras, Palavras”), fiquei muito emocionada, já imaginando meus pacientes com afasia em peças teatrais. Afinal, eu sempre acreditei no poder do teatro na reabilitação de pessoas com dificuldades na comunicação, principalmente porque um dos prejuízos da afasia, além da fala, pode ser na comunicação gestual e também a pessoa não conseguir expressar suas emoções. E o teatro sempre foi muito positivo para a estimulação da linguagem e da expressão”, explica.

Assim, ao voltar para o Brasil, a fonoaudióloga lembrou de um ex-paciente, Nicholas Wahba, que teve alta da reabilitação da linguagem após três anos e meio de sessões diárias com Fernanda, além de outras terapias, como a psicomotricidade, por conta de um acidente de carro que sofreu quando tinha 16 anos, há 34 anos. Na época, Wahba era atleta de basquete e, com o ocorrido, teve traumatismo cranioencefálico grave, tendo que ser submetido a cirurgias no cérebro e na traqueia. Como sequela, tornou-se afásico. Antes do acidente, ele já atuava em algumas peças na escola e durante sua reabilitação por conta da afasia, passou a ter aulas com o grupo teatral Atíria, do diretor Hélio Braga. “Minha fala lembrava a de um bêbado, apesar de não beber absolutamente nada de álcool e, por isso, o Hélio quis me dar o papel de um marinheiro bêbado na peça infantil ‘Marinho, o Marinheiro’”, brinca Wahba, que passou a participar de diversas outras peças. Alguns anos depois, o diretor deu novamente outro desafio a Nicholas: participar da montagem de “O Burguês Fidalgo”, de Molière, no papel de Cléonte, que se apaixona pela filha do burgo. “Eu olhei o script e no dia seguinte falei para o Hélio que não conseguiria decorar as falas. Mas, ele disse que eu ia conseguir e eu ficaria surpreso comigo mesmo. E foi o que aconteceu: me saí bem e a minha capacidade de decorar as falas realmente me surpreendeu”, diz o ator.

Com sua melhora a cada dia, Nicholas levou a ideia do teatro às sessões com Fernanda, pedindo à especialista que adotasse esquetes para treinarem durante a terapia de reabilitação. E, assim, o teatro foi ajudando-o a ultrapassar os desafios diários da condição de afásico. “Mas vale lembrar que a reabilitação depende do tamanho e local da lesão, gravidade e idade do paciente. Às vezes, dois pacientes que têm o diagnóstico similar não terão o mesmo resultado, porque há muitas variáveis envolvidas. Mas, no caso do Nicholas, que tinha uma lesão importante, sua incrível motivação e força de vontade também foram fundamentais, tornando surpreendente sua recuperação com a inserção das técnicas teatrais”, esclarece Fernanda. 

Confira a música que Manu Lafer, compositor, cantor, médico, intérprete e autor de mais de 100 canções gravadas, compôs sobre a Ser em Cena, citando a história de Nicholas:

Após sua alta das sessões de fonoaudiologia por ter retomado a sua comunicação, Nicholas foi fazer um teste vocacional e decidiu cursar administração de empresas. Mas, como notou que não era o que queria para sua vida, acabou largando o curso no segundo ano de faculdade para cursar propaganda e marketing. Porém, novamente chegou à conclusão de que não era a profissão que o motivava. Fazendo pesquisas na internet sobre profissões, descobriu o maestro Sigfrido Aguilar Trinidad, especialista em clown no México e nos Estados Unidos. Optou em ir para o México para fazer a formação, descobrindo a sua vocação. Fez ainda formação em DanceAbility (um método de dança que utiliza a improvisação de movimentos para promover expressão e a troca artística entre pessoas com ou sem deficiência), sendo responsável atualmente pelas oficinas  com a técnica e de clown. Nicholas ministra também palestras na USP.

Mesmo depois da alta, Fernanda ainda mantinha contato com o jovem, que compartilhava com a especialista suas conquistas na vida. Por isso, ele foi a primeira pessoa que a fonoaudióloga lembrou ao conhecer o Théatre Aphasique e querer implementar o modelo canadense no Brasil. Nicholas abraçou a ideia prontamente e então foi fundada a Ser em Cena em 2002 e institucionalizada em 2004, quando se tornou uma organização não governamental, sem fins lucrativos. Hoje, conta também com Elie Wahba na administração, pai de Nicholas, que é vice-presidente sênior da Fox Film do Brasil. 

Os atendimentos da Ser em Cena

A princípio, as oficinas teatrais eram realizadas no consultório da fonoaudióloga, mas o sucesso começou a ser tamanho com os diversos espetáculos teatrais (veja todos no site da instituição, clique aqui) que Fernanda organizava e realizava com os alunos no Teatro Bibi Ferreira, que o espaço passou a ficar limitado diante de tantas pessoas que buscavam a instituição. Na época, a Ser em Cena chegou a participar ainda do programa “Ação”, da Rede Globo, com apresentação de Serginho Groisman, e então, passou a ser procurada por diversas pessoas interessadas em saber mais sobre os distúrbios de comunicação e sobre as atividades oferecidas pela instituição. Para atender a demanda, dois grupos de afásicos eram atendidos na sede da Ser em Cena e no SESC Consolação, com apoio de psicólogos, fonoaudiólogos e profissionais da arte dramática. Em 2005, a Ser em Cena conquistou a sua sede atual, no bairro da Água Branca (SP), que foi doada pela Disney/Fox Film do Brasil.

A instituição ultrapassa atualmente a marca de 1000 pessoas atendidas com reabilitação fonoaudiológica e, juntamente com a equipe de psicólogos, orienta as atividades para a obtenção de melhores resultados na recuperação de cada um. As oficinas de teatro acontecem em grupo. “O exercício do teatro contribui para o treino das habilidades necessárias à recuperação do afásico ou às pessoas com necessidades complexas de comunicação, estimulando o desenvolvimento da compreensão oral, da expressão, da leitura e escrita, a linguagem corporal, o aperfeiçoamento da coordenação motora, além do desenvolvimento da afetividade. E as pessoas jamais são expostas em suas dificuldades, nós ressaltamos o que elas conseguem falar e as encaixamos em cenas específicas, respeitando as limitações de cada um. Por exemplo, tivemos o caso de um senhor que só conseguia falar uma palavra de cada vez, mas tinha uma expressão facial muito boa. Então o papel dele era olhar de forma expressiva e depois ele falava uma palavra, que combinava perfeitamente com a cena”, explica a idealizadora da instituição. Ela diz ainda que as pessoas se surpreendem com a capacidade que elas mesmas têm ao participar do teatro, no palco. “Tivemos um outro caso de um senhor que era poeta antes da afasia, mas ele não conseguia falar. Em uma cena, o colocamos com uma voz ao fundo recitando suas poesias, enquanto ele olhava para o público. Ou seja, independente do grau de dificuldade na fala, as pessoas fazem parte dos espetáculos”, explica a especialista, que ressalta que a produção das peças é totalmente profissional e destaca sempre o lado divertido e das possibilidades, ao invés das limitações.

Os atendimentos da Ser em Cena são gratuitos, por meio de técnicas modernas de reabilitação, trabalham com o modelo interdisciplinar e os recursos criativos trazidos pelo teatro, mímica, música e artes, que promovem uma interação lúdica e mobilizam a expressão espontânea, auxiliando na motivação do paciente e no treino de habilidades necessárias à sua recuperação. “Além disso, incentivamos a troca de experiências entre os participantes: eles passam a partilhar suas dificuldades com pessoas que têm o mesmo problema, fazem amizades, incentivam um ao outro no avanço da reabilitação. Eles montam grupos no WhatsApp e temos um lema na fonoaudiologia em que cada um tem que falar todos os dias, pelo menos, 50 vezes a frase ‘estou falando cada vez melhor’, da forma como conseguirem. E eles gravam um para o outro e, assim, todos vão motivando o grupo”, diverte-se Fernanda.

foto de um grupo de pessoas todas de camiseta preta do Ser em Cena
crédito da imagem: Ser em Cena

Para as pessoas que estão afásicas, Wahba deixa a seguinte mensagem: “As pessoas precisam ir atrás sempre das melhoras. O modo como consegui recuperar a fala não foi de um dia para o outro, foram vários anos de sessões diárias de fonoaudiologia, psicomotricidade, psicologia, teatro, terapia ocupacional, além de exercícios para recuperar outras habilidades. Minha mãe, por ser psicóloga, me passava também exercícios de compreensão de texto. Sei que no começo não é fácil, mas o importante é que as pessoas comemorem as pequenas vitórias, que fiquem felizes pelas singelas conquistas dia após dia, em que vamos construindo degrau por degrau. Com empenho, é possível recuperar a comunicação e mesmo que a pessoa não consiga fazer todos os dias as sessões, faça em casa os exercícios, não deixe para se exercitar apenas durante as terapias. E o mais legal do teatro e da dança é que cada pessoa consegue participar de acordo com suas limitações, mas o importante é que todos podem fazer parte e é maravilhoso quando as pessoas percebem suas capacidades!”, diz Nicholas.

Anualmente, a Ser em Cena promove um espetáculo ao final do ano com os alunos, sob a batuta da diretora de teatro Elisa Band que, junto com Nicholas, é responsável pelos exercícios teatrais. Mas, por conta da pandemia e da retomada recente das atividades presenciais, a apresentação que seria neste ano está marcada para junho de 2023, no Teatro Sérgio Cardoso. 

Os interessados em participar das oficinas oferecidas pela instituição (Teatro, Musicalização, DanceAbility, Estimulação Cognitiva e Psicomotricidade/Expressão Corporal) devem passar por uma triagem, pois, segundo a especialista, há grande procura por pessoas que não são afásicas. “Além disso, nem sempre um AVC resulta em afasia. Ou, no caso de outras patologias, a pessoa passa por uma avaliação de fonoaudiologia para saber se há afasia, pois, este é o foco da Ser em Cena: a reabilitação do paciente afásico”, esclarece.

A instituição recebe doações, uma vez que os atendimentos são gratuitos e têm uma estrutura para atender todos que precisam de reabilitação. “Nós quase fechamos na pandemia, porque precisávamos pagar as contas da estrutura e muitas empresas patrocinadoras acabaram retirando o aporte. Hoje, precisamos voltar a angariar fundos para manter a Ser em Cena”, diz. Os interessados em contribuir devem acessar: https://www.seremcena.org.br/doacoes-ser-em-cena.html

Mais informações:

https://www.seremcena.org.br/doacoes-ser-em-cena.html#

E-mail: seremcena@seremcena.org.br

(11) 3801-8166

(11) 3862-7018

Redação Civiam

Entrevistas, histórias reais e conteúdo sobre diversos aspectos ligados às Tecnologias Assistivas e à educação na saúde.

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