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Ecolalias como caminho para a comunicação: o olhar sobre os processadores Gestalt de linguagem

Foto de Ana Philips dando uma palestra em um evento do ISAAC Brasil sobre processamento de linguagem e CAA

Em meio às novas compreensões sobre o desenvolvimento da linguagem, um conceito tem ganhado destaque na fonoaudiologia: o do processador Gestalt de Linguagem (PGL) – pessoas que aprendem a se comunicar por meio de blocos inteiros de fala, e não por palavras isoladas. 

O termo “gestalt”, de origem alemã, significa “forma”, “configuração” ou “todo”, e foi inicialmente empregado na Psicologia da Gestalt, que propõe a ideia de que “o todo vem antes das partes”. A partir da década de 1970, o conceito passou a ser incorporado à fonoaudiologia, por pesquisadoras que o aplicaram ao estudo do desenvolvimento da linguagem. Posteriormente, entre os anos 2010 e 2020, o termo ganhou maior difusão graças aos trabalhos de Marjorie Blanc.

Assim, essa forma de aquisição linguística por meio de blocos é comum entre autistas e costuma se manifestar nas chamadas ecolalias, repetições de falas, músicas ou trechos de vídeos.

Embora por muito tempo as ecolalias tenham sido vistas apenas como um comportamento repetitivo sem função comunicativa, pesquisas e práticas clínicas têm trazido um novo olhar para esse fenômeno. A fonoaudióloga Ana Maria Philipps dos Santos explica que, para muitas crianças, especialmente autistas, a ecolalia pode representar uma etapa fundamental no desenvolvimento da linguagem. Por isso, para a especialista, compreender e valorizar essas repetições como parte do processo comunicativo é fundamental para ampliar o potencial de expressão e conexão dessas crianças com o mundo. Segundo ela, “o processador Gestalt é aquela criança que usa as ecolalias com função de comunicar, de interagir. Ela começa com combinações maiores e, aos poucos, vai refinando até construir sua própria linguagem”, explica a fonoaudióloga.


Ana destaca que tanto pessoas falantes quanto não falantes podem ser processadoras Gestalt. “A gente observa crianças que voltam sempre ao mesmo trecho de um desenho, repetem frases com entonações específicas ou demonstram preferência por músicas com forte carga emocional. Essas repetições, que muitas vezes parecem apenas automatizadas, carregam um sentido. E mesmo quando a criança não fala, podemos perceber essa ecolalia em outras formas de comunicação – na prosódia, nos gestos, ou até na repetição de botões em um sistema de CAA”, salienta.

Processador Gestalt e a CAA

A fonoaudióloga ressalta  que, em alguns casos, o uso da Comunicação Aumentativa e Alternativa precisa ser adaptado, já que muitos sistemas tradicionais são baseados em uma estrutura analítica – palavra por palavra. “Para o processador Gestalt, esse modelo não faz sentido, porque, como já mencionado, ele pensa e se comunica em blocos maiores. Então precisamos criar botões que representam enunciados completos, frases com significado único para ele”, orienta.

Mas, ao contrário da crença comum de que reforçar as ecolalias deixaria a criança “presa” a elas, Ana explica que o resultado é justamente o oposto. “Quando validamos a ecolalia como forma legítima de comunicação e usamos isso como base, a criança passa a ter mais intenção comunicativa. Ela responde mais, se envolve mais e começa a usar o sistema de forma funcional”. 

Para exemplificar, na prática clínica, a fonoaudióloga adapta as pranchas de comunicação alternativa para que representem visualmente esses blocos de linguagem. “As pranchas com cenas visuais – e não em formato de grade – têm mostrado muito mais efeito na pragmática, no desenvolvimento da conversa. É a forma como conseguimos representar o que está sendo ensinado e compreendido pela criança”, relata.

Como identificar processadores Gestalt de linguagem?

De acordo com a fonoaudióloga, é possível identificar processadores Gestalt de linguagem (PGL) tanto em falantes quanto em não falantes. “A gente associa a ecolalia só à fala, né? Mas, as ecolalias acontecem também em outras formas de comunicação multimodal. Então, se eu tiver um paciente falante na minha frente, já começaria identificando se ele usa ecolalias tardias, que é um sinal claro do primeiro estágio do desenvolvimento de um PGL”, destaca Ana, que complementa: “Nós vamos ver crianças que têm acesso à tela repetir mesmo trechos de um desenho, por exemplo, ou buscando por músicas que têm uma emoção carregada de uma prosódia diferente. Se a criança fala, inclusive, podemos observá-la fazendo uma voz robotizada, que, muitas vezes, não é dela – é como se estivesse o tempo todo reproduzindo o que os outros falam na entonação, na fala diferente. Em crianças minimamente falantes, observamos que, muitas vezes, podem cantarolar ou ainda ter um jargão – que, na verdade, não é bem um jargão, é que ela não tem ainda o desempenho motor para poder falar tais frases completas que está tentando reproduzir. Nas brincadeiras, a gente vai ver essa criança também querendo brincar sempre com as mesmas brincadeiras, sempre com os mesmos objetos, reproduzindo aquelas brincadeiras que parecem sempre rígidas e repetitivas, mas não são rígidas, é porque é aquela forma dela brincar dentro daquele bloco”, explica Ana Philipps.

Outro fator que caracteriza um PGL, de acordo com a fonoaudióloga, é a presença da ecopraxia, que são ecolalias ligadas ao corpo, muito parecidas com estereotipia, mas na verdade não são. “Normalmente uma ecopraxia está ligada a uma mensagem, a um gesto, a uma função de comunicação. Se essa criança for não falante e for usuária de CAA, por exemplo, a veremos usando ecolalia no seu sistema, então ela vai repetir diversas vezes o mesmo botão, vai fazer uma sequência de sons, de botões, para reproduzir sempre o mesmo enunciado. Ou, a veremos querendo voltar sempre para a mesma página, rígida, às vezes não querendo deixar você tocar no dispositivo. E vale ressaltar que se ela estiver utilizando um sistema de CAA, pode ser que ela não avance em seu desenvolvimento, porque o sistema todo que a gente conhece até hoje é baseado em sistema analítico –  então é como se o sistema não atraísse a sua atenção e, assim, ela vai se desinteressando por usá-lo. Mesmo se o terapeuta utilizar a modelagem, ela não vai se desenvolver quanto à linguagem, porque  aquele sistema não representa o desenvolvimento de linguagem em que ela está”, destaca a fonoaudióloga.

Na prática: casos reais

Com base em sua experiência, Ana afirma que a maioria de seus pacientes autistas são processadores Gestalt de linguagem. Ela cita ainda que estudos internacionais, como o do pesquisador Barry Prizant, indicam que cerca de 85% das pessoas autistas se enquadram nesse perfil. “Eu tenho pacientes que, antes de identificarmos o processamento Gestalt, não demonstravam nenhum interesse em se comunicar. Quando comecei a modelar suas ecolalias dentro dos contextos corretos, eles passaram a construir suas primeiras frases. Hoje, essas crianças têm prazer em se comunicar, e a família finalmente entende o que elas querem dizer”, conta.

Um dos casos relatados pela fonoaudióloga é o de uma menina que usava pouco o sistema de CAA e tinha baixa intenção comunicativa. “Depois que incluímos os gestalts dentro do sistema, ela saiu do uso de palavras isoladas e hoje conversa com autonomia. Ela entende o significado das frases, e isso transformou completamente a relação com a família, que hoje a entende, de fato, como ela é”, salienta a fonoaudióloga.

Por isso, para a especialista, reconhecer o processador Gestalt de linguagem é essencial para promover o desenvolvimento comunicativo e emocional da criança. “A ecolalia é o ponto de partida. Quando a gente dá significado ao que a criança repete, estamos ajudando-a a abrir uma ponte de conexão com o mundo”.


História de vida

A fonoaudióloga Ana M. Philipps dos Santos relembra o início de sua trajetória profissional e como sua visão sobre o autismo se transformou ao longo do tempo. Durante o estágio em uma instituição para crianças com deficiência, ainda na graduação, ela conta ter tido uma experiência frustrante: as práticas eram baseadas em treinos repetitivos e sem sentido comunicativo, voltados à obediência e não à interação. Essa abordagem, segundo ela, desconsiderava as individualidades e a conexão entre terapeuta e paciente.

Mais tarde, já em seu primeiro emprego, Ana atendia cerca de 55 autistas por semana em um serviço público e enfrentava novamente um cenário voltado à repetição mecânica de comandos, protocolos, semelhante ao modelo de ‘adestramento’. Sentindo-se despreparada, percebeu que faltava compreensão sobre o desenvolvimento da comunicação com pessoas autistas.

A virada em sua trajetória aconteceu quando um paciente com autismo estabeleceu contato visual e conexão genuína, fazendo-a compreender que a comunicação vai muito além da fala. A partir desse encontro, Ana passou a entender o autismo sob a ótica da comunicação multimodal, reconhecendo a importância de respeitar o modo singular de cada pessoa se expressar e se conectar. Assim, foi em busca de conhecimento e, além de diversas formações na área, ela passou a estudar diretrizes de atuação de autores renomados do exterior, como Anne Peters, Marge Blanc e Barry Prizant, chegando, assim, ao entendimento dos processadores Gestalt.

E, ao compreender que muitos fonoaudiólogos têm a mesma dificuldade que ela tinha no início de sua carreira, ao aplicarem protocolos, mas sem resultados efetivos, ela passou a se aprofundar também em uma lacuna que, segundo ela, é bastante evidente na formação dos profissionais da área e, consequentemente nos atendimentos: a falta de raciocínio clínico de linguagem. “É comum ver profissionais presos a protocolos e metodologias, que devem servir apenas para nortear os atendimentos, mas não aprisionar o profissional, que passa a ser um repetidor de técnicas, sendo que o mais importante é o desenvolvimento do raciocínio clínico”, ressalta. 

Assim, ao ver na prática clínica os resultados reais com diversos pacientes, a fonoaudióloga passou a se tornar uma referência no atendimento a autistas. Com a crescente demanda de profissionais da área, que pediam seu auxílio, Ana passou, em 2022, a ministrar grupos de mentorias e a desenvolver cursos voltados aos profissionais da área. 

Hoje, ela disponibiliza três cursos: “Conexão Comunicativa: CAA para pais e profissionais”, “CAA nas Escolas” e “Formação Fonoconecta” (específico para fonoaudiólogos aprenderem a desenvolver o raciocínio clínico em seus atendimentos com a CAA). Saiba mais: https://anaphilipps.com.br/