desfazendo mitos e rótulos sobre o transtorno

Desatenção, esquecimentos, impulsividade, procrastinação. Essas são alguns dos comportamentos que levam às confusões acerca do que, de fato, são inerentes ao Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), uma vez que trata-se de um transtorno neurobiológico de causas genéticas, que tem como característica alguns comportamentos considerados “normais” na vida cotidiana de grande parte das pessoas, como falta de atenção, inquietação e impulsividade. Porém, observar se tais sintomas estão presentes desde a infância (antes dos 12 anos) e acompanham a pessoa na fase adulta é um dos principais diferenciais em relação ao transtorno.
Por isso, o Dia Mundial de Conscientização do TDAH, celebrado no dia 13 de julho, é de suma importância como forma de disseminação da informação de qualidade para que a sociedade compreenda o que é o transtorno: “O TDAH não é simplesmente “ser distraído”, “viver no mundo da lua” ou “esquecer as coisas”. Todo mundo se distrai de vez em quando. Todo mundo esquece o nome de alguém, perde a chave ou deixa um compromisso passar. Isso é normal, especialmente com a correria do dia a dia, estresse, sono ruim ou excesso de estímulos. A diferença está na intensidade, frequência e no impacto funcional. No TDAH, o esquecimento e a desatenção não acontecem de vez em quando. Eles acontecem o tempo todo, em vários contextos e causam prejuízo real: você perde prazos, compromete sua produtividade, deixa tarefas pela metade, tem dificuldade de manter a organização mínima da vida. E isso desde muito cedo, não só na fase adulta. Tem pessoas que perdem o emprego, que ganham menos do que poderiam, que se endividam, que sofrem acidentes, que perdem casamentos, amigos…tudo por causa dos sintomas. Por isso, o TDAH não é só sobre atenção. Ele também afeta funções executivas como organização, planejamento, controle da impulsividade e regulação emocional. Ou seja: o problema não é só “foco”, é como o cérebro gerencia o comportamento como um todo”, salienta Ana Paula Francisco, psiquiatra, psicoterapeuta, neurocientista, especialista em TDAH pela McMaster University (Canadá) e Doutora em Psiquiatria e Ciências da Saúde.
“Além disso, os sintomas do TDAH muitas vezes se confundem com outros quadros, como ansiedade ou transtornos do humor, o que torna o autodiagnóstico ainda mais arriscado. Por isso, o diagnóstico deve ser sempre feito por um profissional, com uma avaliação criteriosa. Teste de internet com 5 perguntas e uma frase pronta não é diagnóstico. É desinformação com embalagem de praticidade. O TDAH é um transtorno complexo que exige uma avaliação clínica cuidadosa, que leva em conta o histórico de vida, o início dos sintomas, o impacto funcional e a exclusão de outras causas. Por isso, é tão importante procurar um profissional qualificado para evitar diagnósticos precipitados e também para não deixar de tratar um transtorno que, quando identificado, pode mudar completamente a qualidade de vida da pessoa”, destaca a especialista.
E quando a pessoa adulta deve buscar ajuda médica para checar se tem o transtorno? “Sempre que os sintomas estiverem atrapalhando sua vida, é preciso buscar ajuda médica. Pode até não ser TDAH, mas se há sofrimento, prejuízo ou sensação de não conseguir funcionar como gostaria, vale procurar um psiquiatra ou psicólogo com experiência no assunto. Porque identificar o que está por trás desses sintomas é o primeiro passo para lidar com eles de forma mais saudável e eficaz. Além disso, receber o diagnóstico na vida adulta pode ser transformador. Muitos pacientes me dizem que finalmente conseguem dar nome para algo que sentem há anos. Ao mesmo tempo, esse diagnóstico pode vir acompanhado de um luto: a pessoa olha para trás e percebe o quanto sofreu sem saber o motivo. Por isso, é essencial que o diagnóstico venha com acolhimento, informação de qualidade e um plano de tratamento individualizado”, enfatiza a médica.
Diagnóstico de TDAH
A especialista destaca que o diagnóstico de TDAH não é simples, tampouco rápido. “Não existe um exame de sangue, uma ressonância, eletroencefalograma ou um teste online que possa, sozinho, confirmar o transtorno. O diagnóstico é clínico, feito a partir de uma avaliação cuidadosa da história de vida do paciente, do padrão dos sintomas, da presença de prejuízos funcionais e da exclusão de outras condições que possam gerar sintomas parecidos. Na minha prática, eu realizo uma consulta diagnóstica com duração de pelo menos duas horas, voltada exclusivamente para isso. Durante esse tempo, eu investigo desde a infância da pessoa até o momento atual, avaliando não só sintomas de desatenção, impulsividade e hiperatividade, mas também o impacto emocional e comportamental desses sintomas ao longo da vida. Também aplico escalas específicas, quando necessário, e posso solicitar informações de terceiros (como familiares ou professores, no caso de crianças e adolescentes). Além do TDAH, investigo outros transtornos que podem ser confundidos ou que podem acontecer em conjunto, como ansiedade, depressão, autismo, histórico de trauma ou dificuldades de sono que podem confundir o quadro. Em muitos casos, o diagnóstico só pode ser fechado após algumas consultas, e o acompanhamento contínuo é fundamental para entender nuances e ajustar o plano de tratamento com segurança”.
Por isso, a dra. Ana Paula enfatiza: “Quando se fala em diagnóstico de TDAH, é importante entender que não se trata de “marcar uma consulta e sair com um laudo”. É um processo cuidadoso, que exige tempo, escuta, técnica e experiência. O TDAH é bem mais complexo do que as pessoas ouvem nos reels de 1 minuto e 30”. Por isso, ser avaliado por alguém com experiência real em TDAH faz diferença. Tanto para receber o diagnóstico correto quanto para não receber um diagnóstico errado. Porque o mais difícil nem sempre é identificar o TDAH, mas, sim, perceber quando não é TDAH, mesmo que os sintomas se pareçam. Se o profissional não tiver familiaridade com essas nuances, o risco de erro aumenta”.
A especialista destaca ainda: “As pessoas acham que vão vir na consulta receber o diagnóstico, o remédio e em um mês serão outras. E não é assim. Existe um processo. A medicação ajuda muito, e tem efeito rápido quando está na dose adequada. Mas, o TDAH vai muito além. A pessoa ainda precisa aprender habilidades, precisa aprender a se enxergar novamente e saber o que é do transtorno e o que é dela e isso leva tempo”.
Casos reais de melhora de vida pós-diagnóstico na fase adulta:
A dra Ana Paula cita dois casos de pacientes, entre os diversos que presencia em seus atendimentos, que tiveram mudanças significativas após serem diagnosticados com TDAH:
“O primeiro é um homem na casa dos 40 anos, empresário, que me procurou exausto, achando que estava entrando em burnout. Ele se sentia permanentemente sobrecarregado, começava vários projetos e abandonava no meio, esquecia reuniões, perdia prazos importantes e se cobrava muito por isso. Já tinha passado por terapia, tentado organizar a rotina com aplicativos, mas nada realmente melhorava. Durante a avaliação, ficou claro que ele tinha todos os critérios para TDAH desde a infância, mas nunca havia sido diagnosticado. Como era inteligente e não dava trabalho na escola passou batido. Com o tratamento adequado que incluiu medicação, psicoterapia cognitivo comportamental e estratégias específicas para o seu funcionamento, em um ano após início do tratamento conseguiu estruturar melhor a empresa, delegar tarefas, diminuir a autocrítica e, pela primeira vez em anos, sentiu que estava no controle da própria vida. O casamento dele melhorou, a relação com os filhos também. Até no trânsito, ele antes estava sempre com multas por excesso de velocidade e depois não aconteceu mais.
O segundo caso é de uma mulher de 35 anos, professora, que veio me procurar se sentindo um fracasso. Inteligente, se esforçava muito no trabalho e em casa para dar conta de tudo. Mas vivia sempre atrasada, esquecia compromissos, acumulava tarefas em casa e no trabalho, e vivia se comparando com as colegas. Já tinha sido diagnosticada com depressão algumas vezes, mas o tratamento nunca ajudava totalmente. Durante nossa avaliação, ela entendeu pela primeira vez que o que sentia era do TDAH. Com o diagnóstico e o tratamento, ela passou a ter uma vida mais leve, e fazer as mesmas coisas com muito menos esforço – o que a possibilitou ter mais tempo livre com a família. Vale destacar que o tratamento a ajudou não só a se organizar melhor, mas também a reconstruir a própria autoestima: ela achava que era menos inteligente que as outras pessoas, pois tinha um histórico de ir mal no colégio – o que a fazia se sentir também uma fraude por hoje atuar como professora”.
Alerta aos autotestes
Amplamente divulgado, o ASRS-18, também conhecido como Escala de Autoavaliação do Adulto para TDAH, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é um questionário de 18 itens utilizado para rastrear sintomas do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em adultos. De acordo com o que informa o teste (disponível no site do Senado), ele não é o diagnóstico por si só, “mas serve como uma ferramenta para identificar possíveis casos de TDAH, auxiliando o profissional de saúde na avaliação clínica”.
No entanto, a psiquiatra Ana Paula acende um alerta: “O ASRS-18 pode até servir como uma espécie de bússola, mas é uma bússola meio imprecisa. Ele pode apontar um risco aumentado para TDAH, mas não serve para confirmar ou excluir o diagnóstico. É absolutamente possível que alguém marque alto no teste e não tenha TDAH. Assim como é possível que alguém com TDAH não “pontue” o suficiente no ASRS. Isso acontece porque o teste capta sintomas, mas não avalia o contexto, a duração, o início na infância, nem os prejuízos causados. E é justamente aí que está a diferença entre ter sintomas parecidos e ter TDAH de fato. Então, a pergunta mais importante que a pessoa deve fazer a si mesma é: “O que eu estou sentindo está atrapalhando minha vida?” Se você sente que sua atenção, impulsividade, desorganização ou esquecimentos estão prejudicando sua rotina, trabalho, estudos ou relações vale procurar um profissional, mesmo que o resultado do teste não indique risco. Pode ser TDAH. Mas pode ser também ansiedade, estresse, insônia, efeitos de experiências traumáticas… e entender a causa é o primeiro passo para cuidar de forma adequada do que está por trás dos sintomas”.
Aumento do número de adultos diagnosticados com TDAH
“Nos últimos anos, o diagnóstico de TDAH em adultos tem se tornado mais comum. Não porque mais pessoas tenham TDAH, mas porque hoje há mais informação e mais profissionais capacitados para reconhecer o quadro, algo que era muito raro há 10 ou 20 anos”, explica a dra. Ana Paula.
Ela complementa: “Durante muito tempo, o TDAH foi visto como um problema de meninos agitados na escola. Se a criança era inteligente, quieta ou não dava “trabalho”, ninguém percebia. E se chegava à vida adulta com dificuldades para se organizar, manter o foco ou lidar com as emoções, escutava que era preguiçosa, desatenta, desorganizada, imatura. Não era TDAH, era “falta de esforço”. O que mudou não foi a prevalência do transtorno, mas o conhecimento sobre ele. Hoje entendemos que o TDAH não desaparece na vida adulta na maioria dos casos e que ele pode se manifestar de formas muito diferentes do estereótipo da hiperatividade e desatenção clássica. Entendemos que adultos que passaram a vida se culpando podem, na verdade, estar lidando com um cérebro que funciona de um jeito diferente e que pode ser compreendido e tratado. Então não, o TDAH não virou “moda”, como muitas pessoas dizem. Ele só deixou de ser negligenciado”.
A médica salienta também sobre a importância do acesso à informação de qualidade: “Ver mais pessoas sendo diagnosticadas significa que mais pessoas estão tendo acesso à informação, a profissionais preparados e, principalmente, à chance de entender a si mesmas com mais compaixão e encontrar caminhos que funcionem de verdade. E isso, pra mim, é um grande avanço. Mas quando o transtorno vira uma ‘explicação rápida’ para qualquer dificuldade, a gente corre o risco de banalizar um quadro que é sério e que exige acompanhamento adequado”.
Os principais mitos sobre o TDAH, segundo a dra Ana Paula Francisco:
● “Se você consegue prestar atenção em algo que gosta, então não é TDAH.”
Pessoas com TDAH podem ter hiperfoco em temas que as interessam muito. O problema não é “não ter foco”, é não conseguir regular o foco. Inclusive o hiperfoco mais atrapalha elas do que ajuda. Não é um superpoder. Ficam entediadas rápido em tarefas monótonas, mas mergulham demais no que é estimulante.
● “TDAH é só coisa de criança.”
Hoje se sabe que o TDAH persiste na vida adulta na maioria dos casos, embora possa mudar de forma: a hiperatividade, por exemplo, muitas vezes se transforma em agitação interna, sensação de inquietação.
● “É só falta de esforço ou preguiça.”
Esse é o mais cruel. Quem tem TDAH geralmente se esforça muito mais do que os outros imaginam mas com resultados inconsistentes, o que gera frustração, culpa e baixa autoestima.
Quando o destino se torna propósito: a jornada da dra. Ana Paula Francisco com o TDAH
“Eu costumo dizer que não fui eu que escolhi o TDAH, foi o TDAH que me escolheu. Na época, eu planejava fazer uma especialização no Canadá em outra área, mas, de última hora, a bolsa de estudos foi cancelada. E eu poderia fazer, mas precisaria me manter com fundos próprios. Como eu não teria condições de me manter no país durante uma formação integral e não remunerada, precisei buscar outro caminho. Foi então que surgiu um processo seletivo para um programa de formação exclusivo em TDAH para psiquiatras. Eu tinha pouco conhecimento sobre o tema, e achei a proposta interessante para aprender sobre algo que não sabia tanto. Então resolvi me candidatar. Fui aprovada e comecei. Esse programa — um clinical fellowship de dois anos, 100% presencial — aconteceu na McMaster University, em Hamilton, no Canadá, e me proporcionou uma imersão completa no diagnóstico e tratamento do TDAH em todas as faixas etárias. Ao longo dessa formação, fui me apaixonando cada vez mais por esse universo e, desde então, decidi que essa seria minha principal área de atuação.
Eu tive excelentes professores, fiz residência em serviços de referência, mas ainda assim aprendi pouco sobre TDAH na minha formação geral. E isso não é um problema só meu é um reflexo de como o conhecimento sobre TDAH ainda é recente, especialmente quando falamos de manifestações no adulto, do impacto emocional, das comorbidades e da diferenciação com outros quadros. E, além de psiquiatria geral em adultos, fiz também psiquiatria da infância e adolescência e tive a honra de ter aulas com o Luis Augusto Rohde que é um dos grandes nomes do TDAH e com quem aprendi muito. Mas ainda assim aprendi muito mais em 2 anos só focando no transtorno. Por uma questão de tempo mesmo me dedicando a esse conhecimento.
Hoje em dia, felizmente, isso tem começado a mudar. Mas ainda atendo psiquiatras e psicólogos que, quando escutam minhas explicações sobre o TDAH, me dizem: “Eu não aprendi isso assim na minha formação”. E estamos falando de um país enorme, com formações muito desiguais. O acesso à informação de qualidade não é o mesmo para todos.
Às vezes, as pessoas têm receio de procurar um especialista como eu por acharem que há “mais chance” de sair com um diagnóstico de TDAH. Mas a verdade é o oposto. Antes de me especializar em TDAH, eu sou psiquiatra. Tenho formação e experiência ampla em saúde mental, e já tratei (e continuo tratando) muitos pacientes que não têm TDAH.
A diferença é que, quando é TDAH, especialmente aqueles casos mais sutis ou camuflados a experiência me ajuda a reconhecer. E quando não é, essa mesma experiência me dá base para enxergar o que mais pode estar por trás daqueles sintomas”.

Por isso, a dra Ana Paula, com o intuito de disseminar cada vez mais informações relevantes sobre o TDAH, compartilha em suas redes sociais temas diversos sobre o transtorno, contribuindo, assim, para combater as ‘fake news’ tão presentes na internet hoje em dia. Confira:
https://www.instagram.com/dra.anapaulatdah/