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Dia Mundial da Alfabetização

O desafio de escolas e famílias na alfabetização de pessoas com necessidades complexas de comunicação

Foto de uma sala de aula cheia de simbolos de Comunicação Alternativa. A professora está de pé na frente de uma mesa com alunos sentados. Ela está compimentando um dos alunos com as mãos.

No dia 8/9 é comemorado o Dia Mundial da Alfabetização, criado em 1967 pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de ressaltar a importância da alfabetização para o desenvolvimento social e econômico mundial, uma vez que é a base da educação. Apesar de ser um direito humano fundamentado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), o acesso ao ensino básico de qualidade ainda é uma realidade distante para muitas pessoas, seja por desigualdades sociais, por preconceitos diversos, por disparidades de gênero e tabus culturais. Para crianças com necessidades complexas de comunicação (NCC), a alfabetização torna-se ainda mais desafiadora e, muitas vezes, algo visto como inalcançável por familiares e educadores.

“A conscientização deste dia é fundamental para todas as crianças, principalmente às crianças com deficiência e outros quadros médicos, mesmo que não falem oralmente. A alfabetização é um direito fundamental e universal a todos os alunos, traz liberdade e autonomia. E se a escola é o lugar da diversidade, pois nenhum aluno é como o outro, nenhum aluno aprende no mesmo tempo e como o outro, é primordial que a escola encontre meios de alfabetizar e ensinar a todos, sem exceção. Sabemos que o número crescente de alunos com quadros de deficiência, além de outros, tem desafiado as equipes escolares, ainda mais quando há dificuldade ou ausência de fala, comprometendo e trazendo impasses no laço com o outro e prejudicando, muitas vezes, o processo de ensino–aprendizagem na escola”, destaca Tatiana Dudas (@fgatatianadudas/), fonoaudióloga, mestre e doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, e membro da ISAAC-Brasil.

A especialista salienta também: “Além disso, a questão da linguagem e sua incidência na vida escolar dessas crianças não têm recebido atenção suficiente. Muitas vezes, não podem se apresentar como falantes plenos da língua – no caso do português – porque há impedimento motor para isso. E sem a fala oral, profissionais podem concluir que a pessoa com deficiência está “fora da linguagem”, ficando, na maioria das vezes, como observadora passiva na sala de aula, com pouca ou quase nenhuma oportunidade de ser aluno, de ter experiências de leitura e escrita. Noto uma ausência de posição de escuta para essas crianças, que são “observadas” ou “notadas” por seu diagnóstico. A consequência é um veredito de “incapacidade cognitiva” para aprender. Conforme discuti em minha tese de doutorado “Problemas de linguagem e descompasso na inclusão escolar (PUC/SP)”, essas crianças interrogam o saber do outro frente ao silêncio que impõem e a limitação orgânica coloca outro problema: o da dificuldade de identificação. A falta de semelhança em relação ao outro parece assombrar e favorecer a atribuição de fragilidade geral para essas pessoas, expandindo, assim, a fragilidade motora para o domínio cognitivo e para a esfera do sujeito”.

Leandro Rodrigues, educador especializado em Educação Especial e à frente do Instituto Itard (@institutoitard/), cujo lema é “Todos podem aprender”, também enfatiza que um dos principais entraves da inclusão de pessoas com NCC no processo de alfabetização está diretamente ligado às barreiras atitudinais, tanto da família, quanto de profissionais da Educação: “A falta de informação reforça a atitude capacitista de achar que, se a pessoa não fala, não vai se alfabetizar. A divulgação de que todos podem aprender, todos têm o direito de se comunicar e sim, de se alfabetizarem, é essencial para a mudança de mentalidade da sociedade”.

Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA): um importante recurso de alfabetização

A fonoaudióloga Tatiana Dudas traz a seguinte reflexão: “Professores tendem a ignorar manifestações vocais ou gestuais de crianças com limitações físicas ou outros quadros e que não falam oralmente. Não se supõe a elas um endereçamento. O “não falar oralmente” gera desconforto, mas não possibilitar a condição de sujeito a alunos que não falam é o centro do problema, pois mesmo sem fala oral, todo corpo é atravessado pela linguagem. 

Foto de uma mesa com duas alunas sentadas. Em close vemos a mão da professora mostranto a uma delas um tablet de Comunicação Alternativa

É importante que a escola consiga se libertar desse modelo tradicional e ideal de educação, pois só assim poderá aprender efeitos singulares de cada aluno e encaminhar uma inclusão mais consistente e efetiva, não somente em relação a uma inclusão social, mas pedagógica, acima de tudo. Sem dúvida, a heterogeneidade de casos e de manifestações imprevisíveis são fatos que um padrão escolar não abrange. Mais do que construir recursos e definir estratégias de ensino, é preciso lembrar que cada caso terá um caminho individual, há uma pluralidade de casos, mesmo em diagnósticos médicos similares. Assim, o professor poderá “escutar” a fala do aluno por meio da materialização da linguagem com o uso da Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), e por consequência, avaliações e atividades escolares poderão ser realizadas, desde que adaptadas e ressignificadas. O aluno poderá responder através de um olhar, por meio de símbolos da CAA, um apontamento, um meneio de cabeça para “sim” ou “não”. Pode não ser a maneira como o professor tradicionalmente está habituado que os alunos participem em sala de aula, contudo, poderá ser eficaz se o professor puder enxergar mais do que o quadro médico e notar que há endereçamento”, explica.

O educador Leandro Rodrigues destaca ainda que, frequentemente, recebe questionamentos de professores da rede pública e particular de ensino sobre como alfabetizar alunos com NCC e, portanto, deixa a seguinte mensagem: “Se você se sente impotente e pensa que nada pode ser feito, lembre-se que o cérebro nunca para de aprender e quanto mais jovem, mais fácil será esse aprendizado. Se você não se sente seguro para tentar algo novo, saiba que existem práticas baseadas em evidências que já foram testadas antes, como o uso da CAA. Se você já tentou e se frustou com os resultados, saiba que bons profissionais capacitados e atualizados são raros em todas as áreas, quando você encontrar um, você saberá imediatamente. Não desista”

Ele enfatiza também: “Muitas escolas ainda não entendem que podem (e devem) adaptar o currículo, priorizar habilidades e ter planos de recuperação de saberes paralelos. Sem essas ações, alunos que não aprenderam o que precisam avançam para o ano seguinte e acumulam defasagem. Isso fica mais evidente quando falamos de alfabetização, mas acontece para todas as competências acadêmicas. Muitos alunos passam os 200 dias letivos de aula sem receber nenhuma instrução de alfabetização (Política Nacional para Recuperação das Aprendizagens na Educação Básica)”.

Aos professores que estão com dificuldades em incluir o aluno com deficiência no processo de alfabetização, ele sugere: “Defina um objetivo claro, específico e mensurável, com prazo. Exemplo: ler 20 palavras com os fonemas “p”, “b” no bimestre. Depois testar diferentes técnicas e formas de adaptação de materiais e atividades para alcançar esse objetivo e ter o aluno fazendo atividades com autonomia”. No vídeo “A estratégia que facilita muito a alfabetização do aluno não verbal”, em seu canal no YouTube (@institutoitard), Leandro explica os prováveis motivos de uma criança não estar sendo alfabetizada, mesmo com os recursos de CAA: “Muitas vezes, o professor quer utilizar uma prancha de CAA, mas, a criança ainda não consegue assimilar a figura à ideia que representa a palavra. Dessa forma, é preciso que o educador volte às fases anteriores de compreensão do aluno: primeiro, do objeto. Por exemplo, ele está aprendendo a palavra maçã, ele precisa estar diante da fruta – claro que nem sempre trazer em sala de aula o objeto será possível, mas quanto mais próximo estiver do real, mais ele compreenderá o que está sendo ensinado. Assim, quando compreendido o objeto físico, o professor deve então inserir uma foto colorida do item. Depois, a foto em preto e branco e somente depois a figura colorida; posteriormente, em preto e branco. Lembrando que a palavra que identifica o objeto deve acompanhar todas as fases, por isso sugiro que em todo o processo de alfabetização, os objetos, bem como os desenhos, sejam etiquetados com suas identificações em palavras”, explica o educador.

Aumento da demanda por cursos de CAA

A fonoaudióloga Tatiana Dudas destaca também que o “não falar oralmente” de alunos com deficiência tem se transformado em demanda de saber dos professores. Por isso, a especialista tem atuado também em cursos de formação para profissionais da educação há alguns anos e em parcerias com as escolas, participando de projetos e discussões, como espaços de escuta para os profissionais da educação, acolhendo as dúvidas de como ensinar, avaliar e alfabetizar as crianças com deficiência. “A ideia é discutir e pensar em conjunto com a equipe todas ferramentas e adaptações de atividades caso a caso. Sigo sustentando junto a esses profissionais que é possível uma outra maneira de falar, mesmo na sutileza de uma movimentação corporal, de um gesto ou por meio dos símbolos da CAA. Quando o professor nota um endereçamento, o início de um laço pode ser feito, o que favorece o processo de aprendizagem e a inclusão escolar. A posição frente ao outro é decisiva! Seja o terapeuta, o familiar ou o professor. Mesmo que haja ausência de fala oral, há um corpo que fala!”, ressalta.

A fonoaudióloga cita ainda o relato de uma professora da rede pública de educação, ao final de um dos seus cursos de CAA: “Ela confessou que havia tido uma aluna com paralisia cerebral que não falava oralmente e que ‘em nenhum momento do ano letivo deu atenção para esta aluna’, pois pensava que ela simplesmente não compreendia o que se dizia ou ensinava. Frente à tal suposição, disse que, ao final do ano, propôs ao grupo um jogo de batalha naval, explicou as regras, mas não ofereceu material para essa aluna. Ela se surpreendeu quando outro aluno disse que a menina “estava querendo participar” da atividade. A professora aproximou-se nesse momento da aluna e notou que ela sinalizava com o olhar e com movimento de cabeça (para “sim” ou para “não”) e, mais que isso, ela notou que “a menina havia compreendido as regras do jogo”. Não se pode deixar de reconhecer que os colegas “tiveram escuta” e a incluíram e, também, que a surpresa e a vergonha (declarada pela professora) tiveram efeitos inclusivos: puderam suspender o foco na limitação física”.

Para ela, o problema na jornada escolar de crianças com deficiência vai além da formação profissional precária de professores em Educação Inclusiva. “Penso que a discussão para esse impasse ultrapassa essa questão. Essas crianças interrogam, sem dúvida, o saber do outro e, para a escola, “templo e guardiã do saber”, não é fácil demonstrar uma posição de não saber, especialmente diante de uma criança que não fala oralmente. Crianças, nessa condição, introduzem um mistério, frente ao seu silêncio. Portanto, há poucas oportunidades de leitura e escrita para essas crianças, pouco investimento nessa área, inclusive familiar, pela baixa expectativa e pela dificuldade em saber como adaptar quando há questões motoras e intelectuais envolvidas, quando a criança não consegue escrever convencionalmente, entre outros fatores. Além disso, há alguns métodos de alfabetização que partem da oralidade. Como então realizar esse trabalho quando há crianças que não falam com sua própria voz, mas com vozes sintetizadas ou outros recursos de CAA? É de suma importância que o processo de aquisição da linguagem escrita seja problematizado nesses casos. As escolas precisam lançar mão dos recursos disponíveis de CAA, pranchas de alfabeto, entre outros, além da necessidade de investir em atividades que são interessantes e significativas para os alunos, e de entender que são sim capazes de aprender, de ler e de escrever”, enfatiza. 

A especialista cita ainda um caso de processo de alfabetização de um menino de 6 anos, na época, com uma síndrome rara (adenilciclase 5). “Juntamente com a equipe iniciei a implementação de um sistema de CAA. Primeiro uma prancha de baixa tecnologia, que ele utilizou por muito tempo e atualmente está fazendo treino com mouse ocular. Lembro que ele sempre foi muito interessado em livros. Pesquisávamos na internet alguns títulos e sinopses e, certa vez, ele demonstrou interessado no livro da Clarice Lispector: “O mistério do coelho pensante”. Eu trouxe o livro no atendimento e fomos lendo, e ele dava sinais de que estava completamente tomado pela história. Ele ria em alguns trechos, ficava bravo, fazia “não” com o dedo quando não concordava com algo e ia comentando com o uso da CAA. Ao final da leitura do livro, eu disse que tinha mais um livro em casa da Clarice Lispector: “A mulher que matou os peixes”. Ele pediu que eu trouxesse e começamos a ler. Notei que o estilo da escritora tinha conquistado ele. De qualquer maneira, quando iniciou na escola, a todo ano era sempre difícil “convencer” os professores de que ele poderia sim ser alfabetizado e estar na escola. A gravidade do quadro e de acometimento dos quatro membros, o fato de não andar, não falar oralmente, não comer por boca e utilizar a CAA por meio do acesso indireto, trazia a ideia de que ele também não entendia. Uma vez a escola pediu que eu filmasse a sessão para “provar” que realmente ele respondia e que não era eu respondendo por ele. Atualmente, ele está sendo alfabetizado, iniciou tarde na escola e por questões clínicas sempre faltou muito nas aulas. Mesmo assim, o uso do mouse ocular está possibilitando mais autonomia quanto ao uso da CAA e do alfabeto, o que está contribuindo mais para esse processo de aquisição da escrita. Além disso, está também cada vez mais integrado ao grupo, participando das apresentações com uso da CAA, recursos de tecnologia assistiva e atividades adaptadas: foi a uma festa do pijama pela primeira vez, escreveu uma mensagem ao aniversariante e usou a voz do aplicativo para parabenizá-lo. E no seu aniversário fez um discurso de agradecimento aos convidados com uso do seu recurso”, relembra

“Por isso, vejo como fundamental a divulgação do Dia Mundial da Alfabetização para lembrar a sociedade de casos como esse e reconhecer que há outras maneiras de ‘falar’ e que há lugar para todos. E, principalmente, é preciso que os direitos sejam respeitados. Todas as pessoas, com ou sem deficiência, com ou sem fala oral, podem e devem estar onde quiserem: nas escolas, trabalhando, nas universidades, nos espaços de lazer, etc. Não há mais lugar para preconceito ou desinformação. A CAA precisa ser mais divulgada e utilizada nas escolas e em diferentes espaços. Pessoas que não falam oralmente, mas que são alfabetizadas, deixam de ser tão dependentes, ganham autonomia, conquistam liberdade, inclusive, para escolherem seu próprio repertório verbal, dizendo tudo aquilo que desejam, sem a total dependência da fala do outro”, destaca Tatiana.

Redação Civiam

Entrevistas, histórias reais e conteúdo sobre diversos aspectos ligados às Tecnologias Assistivas e à educação na saúde.

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