Laboratório de simulação clínica realística da Faculdade de Odontologia (USP) prepara cirurgiões-dentistas para situações clínicas de emergências

O mês de outubro se despede com duas datas de grande importância: no dia 25/10, comemoram-se o Dia do Cirurgião-Dentista e o Dia Nacional da Saúde Bucal. Mais do que homenagear os profissionais que, com conhecimento, sensibilidade e responsabilidade, atuam na prevenção e no tratamento de doenças bucais, essas datas nos lembram da importância de uma atuação consciente e responsável, que protege não apenas a saúde bucal, mas também a saúde geral de cada paciente. Conhecimentos em emergências médicas e suporte básico de vida são essenciais na prática dos cirurgiões-dentistas. E, por isso, engana-se quem pensa que essas situações dizem respeito apenas ao universo da medicina.
Um estudo feito pela Universidade Federal de Goiás ilustra bem essa realidade: entre os anos de 2006 e 2015, 17 mortes em consultórios odontológicos brasileiros foram registradas, algumas das quais tiveram como causa hipertensão, alergias e hemorragias. (Fonte: Jornal da USP). Por isso, dada a importância no preparo dos futuros cirurgiões-dentistas para essas situações, é que a Faculdade de Odontologia da USP inaugurou em 2021, o Laboratório de Simulação Clínica Realística e de Realidade Virtual Aumentada (Lab.Sim-ODC) onde estão incluídas as atividades do Laboratório de Emergências Médicas e Suporte Básico de Vida (LEME), criado em 2008, do Departamento de Cirurgia, Prótese e Traumatologia Maxilofaciais. O objetivo é que o estudante saiba como proceder durante um atendimento clínico quando o paciente apresentar situações que exijam cuidados do profissional como quadros hipertensivos, distúrbios metabólicos (hiperglicemia ou hipoglicemia, por exemplo), crises de ansiedade, ataques cardíacos, engasgos e episódios de pânico, situações que podem ocorrer a qualquer momento durante o atendimento, exigindo, assim, preparo científico, atenção constante e tomada de decisão rápida por parte do cirurgião-dentista. Sob a coordenação do Prof. Dr. Oswaldo Crivello Júnior, a iniciativa da criação de um laboratório de simulação clínica específico para a preparação de alunos de graduação em emergências médicas é pioneira no meio acadêmico em cursos de Odontologia no país.

O estudo “Caracterização de Amostras de Pacientes Submetidos à Anestesia Local em Odontologia com Análise das Relações Clínicas e Medicamentosas Existentes”, de autoria de Crivello, e também de Bianca Fontana e Hyun Ji Lee, destaca ainda a importância da anamnese para a ação correta: “A avaliação pré-operatória de pacientes que irão se submeter a tratamento odontológico, do ponto de vista sistêmico, deve ser completa, detalhada e exige conhecimento acurado do cirurgião-dentista em reconhecer as manifestações de diferentes patologias e suas exteriorizações. A anamnese bem conduzida propiciará o reconhecimento de fatores de risco que levarão o profissional a adaptar a sua conduta terapêutica. Neste estudo, são apresentados os resultados da avaliação do estado clínico do paciente que foi submetido à anestesia local em Odontologia. Informações essenciais para a racionalização das decisões terapêuticas e na prevenção de situações de emergências médicas em tratamentos odontológicos. Demonstram que uma parcela importante da população chega à consulta odontológica em condições médicas que exigem adequação do profissional na conduta do tratamento dentário. Pacientes hipertensos ou com problemas cardiovasculares foram os que mais predominaram em relação a outros sistemas e foram, também, a parcela da população que mais se utilizava de fármacos”.
O estudo afirma ainda: “Em relação aos aspectos clínicos da hipertensão, Bortolatto e Montano (2006) que só com os níveis de pressão arterial sob controle adequado o atendimento odontológico é seguro. Há a necessidade do acompanhamento médico e do conhecimento sobre os medicamentos utilizados pelo paciente. Essa responsabilidade está explícita na Lei 5081 que regulamenta a profissão do Cirurgião-Dentista no Brasil. Dados mostram que quase um terço da população é hipertensa e que aproximadamente metade dela ignora esse fato. Idade avançada, menopausa, etnia negra, obesidade, consumo de sal, álcool, sedentarismo e influência genética são fatores de risco para a hipertensão arterial sistêmica. Na nossa amostra quase 30% dos pacientes não se apresentavam no momento do atendimento com pressão arterial dentro do intervalo considerado ótimo ou normal. Não são números negligenciáveis para a adequada prática odontológica. Mas apenas 15% admitiram ser hipertensos quando questionados. Pacientes que tomavam anti-hipertensivos representaram 18,4% da amostra avaliada. Desta, 9% relataram ter tido quadro de morte súbita na família, sendo que somente a metade destes se declarou hipertensos (em metade deles a pressão arterial não se encontrava nos parâmetros considerados normais e todos tomavam medicamentos anti-hipertensivos)”.

Por isso, Crivello salienta: “O cirurgião-dentista não pode simplesmente ficar observando passivamente a situação, esperando o atendimento especializado chegar, se eximindo de algum tipo de atuação. Ele tem que ter essa formação de práticas atitudinais, por isso, o lema do laboratório é ‘Diagnóstico correto, tratamento correto’, pois, se um paciente vier a óbito em um atendimento odontológico, só podemos afirmar que foi uma fatalidade se todo o protocolo de salvamento em situações emergenciais tiver sido aplicado”, salienta o coordenador. Ele cita ainda o envelhecimento da população: “Ou seja, com mais pacientes envelhecendo, maior a probabilidade de pacientes chegarem ao atendimento odontológico com doenças e condições diversas que o cirurgião-dentista precisa ter conhecimento”.
Entre as práticas simuladas no laboratório estão: aferição da pressão arterial, realizar corretamente massagem cardíaca, realizar a manobra de Heimlich (método pré-hospitalar de desobstrução das vias aéreas superiores por corpo estranho), manter uma postura adequada para evitar situações de ansiedade, entre outras emergências. Os alunos relembram ainda conceitos de fisiologia, morfologia, imunologia e farmacologia durante a prática no laboratório, que também conta com manequins e bonecos como recursos fundamentais para o aprendizado dos participantes.
Além das emergências médicas, Crivello cita a importância da simulação em situações comportamentais que podem ocorrer durante os atendimentos clínicos, contribuindo para uma formação mais completa e realista dos futuros dentistas. “Simulamos, por exemplo, uma paciente grávida para ser atendida no laboratório. Os alunos que participaram da atividade não estavam cientes desta situação simulada, os obrigando a adequar a conduta frente ao caso clínico apresentado”, ressalta.
O LEME foi efetivamente criado em 2008, mas seu conteúdo era ministrado desde 1990 dentro da disciplina de Traumatologia Maxilofacial. Somente em 2022 é que iniciou plenamente suas atividades, após suas atividades serem incorporadas, em 2021, ao Laboratório de Simulação Clínico-Realística e de Realidade Virtual Aumentada (Lab.Sim-ODC). As atividades do laboratório não são obrigatórias, e a participação dos alunos resulta em horas-estágio, mas, segundo o professor Crivello Júnior, essa participação é extremamente necessária para a formação do profissional. “É notável a diferença nas atitudes comportamentais dos estudantes que participam dos que não frequentam as práticas simuladas no LEME”.

Por isso, para o coordenador, a expectativa para os próximos anos é que a metodologia da simulação realística contribua significativamente para a formação do estudante de Odontologia em todas as áreas do conhecimento odontológico. “Certa vez, simulamos uma situação de um paciente insatisfeito com uma prótese realizada pelo profissional. É fundamental que o estudante esteja preparado para enfrentar situações reais e desenvolva habilidades de comunicação – saber explicar, com clareza e segurança, o procedimento realizado. Por isso, o treinamento vai muito além da saúde bucal”, salienta o coordenador. Ele lembra, inclusive, que essa experiência foi determinante para convencer um professor da área da prótese, que inicialmente não via aplicação da simulação em sua área, mas reviu sua opinião após vivenciar o potencial pedagógico da atividade proposta por Crivello.
Ele ressalta ainda: “A aplicação da simulação no LEME segue protocolos adequados, que envolvem a construção do problema (briefing), a execução da simulação e a discussão posterior (debriefing). Este formato representa não apenas o presente, mas também o futuro do ensino odontológico. Trata-se de uma estratégia que permite reproduzir uma ampla variedade de situações clínicas em um ambiente controlado e seguro. A simulação se consolida, portanto, como uma ferramenta facilitadora indispensável no processo de ensino-aprendizagem em Odontologia”.

Nesse contexto, em que a simulação realística vem transformando o ensino da aprendizagem odontológica, a Faculdade de Odontologia da USP é também pioneira na atualização das tecnologias de ponta oferecidas aos alunos. Além do LEME, os estudantes podem também contar com o Laboratório Multiusuário de Simulação, do Centro de Recursos para Aprendizagem, Investigação e Inovação (CRAI), inaugurado em 2023. O espaço é equipado com simuladores Simodont, de realidade virtual, onde os alunos podem praticar uma variedade de procedimentos odontológicos usando instrumentos com feedback háptico – confere a sensação tátil e de força altamente realistas para transmitir a sensibilidade exata dos objetos e diferentes materiais com os quais o usuário está trabalhando – proporcionando, assim, um ambiente de aprendizado seguro, onde os estudantes podem experimentar e praticar cenários reais de pacientes.
Dessa forma, os estudantes podem desenvolver habilidades técnicas e de tomada de decisão em um ambiente controlado, sem colocar em risco pacientes reais. Além de aumentar a confiança e a segurança dos futuros cirurgiões-dentistas, a iniciativa também qualifica o atendimento prestado na Clínica Odontológica da FO-USP, refletindo o compromisso da universidade com a excelência na formação e na inovação em saúde.