Os desafios do nascimento da segunda filha, Juliana, há 31 anos, com a síndrome de Down, foram as sementes para o surgimento do Projeto Conviver Inclusão, da Psicopedagoga Neusa Venditte. Mal ela sabia que todos os percalços enfrentados em uma época em que não havia tanta informação quanto hoje sobre a educação de crianças com a síndrome construiriam toda a bagagem e expertise que utiliza hoje em seus atendimentos.
Neusa cursava Psicologia, quando engravidou de Juliana e já era mãe de Vanessa, com 7 anos na época. “Foi tudo uma surpresa, porque nenhum exame caracterizou a síndrome de Down. E, assim que ela nasceu, a demanda de cuidados era muito grande, pois ela tinha duas cardiopatias congênitas o que nos fez lutar durante um ano por sua vida e exigiu muitos cuidados em relação às suas condições de saúde, nem tanto em relação à síndrome. Pausei a faculdade para me dedicar totalmente aos cuidados dela em casa. Juliana fazia terapias com a fisioterapeuta e a fonoaudióloga em casa até operar o coração com 1 ano de idade e eu acompanhava as sessões com ambas as profissionais, estimulava-a diariamente com os exercícios que elas me ensinavam para que ela não ficasse com tanta defasagem em seu desenvolvimento cognitivo e físico. E com toda essa experiência e com as profissionais, aprendi que eu tinha que colaborar muito mais do que apenas ser mãe, mas participar ativamente do seu desenvolvimento”, diz.
Dessa forma, todo o aprendizado desse período era aplicado por Neusa em diversas atividades na filha, ainda bebê, e a cada uma ela observava os resultados, que eram bastante positivos. “As pessoas com síndrome de Down nascem com hipotonia muscular por todo o corpo, às vezes com sensibilidade a gostos e texturas, lentidão na aprendizagem. Fui então fazendo um trabalho com ela de fortalecimento e tonicidade da musculatura de todo o corpo, inclusive dos seios da face e dessensibilização de paladar. Então, dessa forma, o projeto Conviver Inclusão, sem eu saber, começou a nascer aí, em casa, quando comecei a cuidar da saúde dela e, ao mesmo tempo, passei a aplicar exercícios para desenvolver todas as suas habilidades. E, no seu primeiro ano de vida, mais do que focar no diagnóstico, que é o que a grande maioria das pessoas faz, eu foquei na criança que era a Juliana. Por isso, eu sempre ressalto para as mães que por trás da síndrome de Down existe um bebê, uma criança, uma pessoa que precisa ser vista e compreendida”.
E, de acordo com Neusa, a cirurgia foi um divisor de águas na vida da pequena. “Somente após a operação é que ela começou a ganhar peso e com todo o meu cuidado em casa é que ela passou a viver realmente. Com 1 ano e meio ela teve alta médica e com os 2 anos e meio de idade ela começou a andar. Então, passamos a estimulá-la com muitas brincadeiras lúdicas e socialização da família e amigas da irmã mais velha, além de terapias, despertando-a para várias aprendizagens. É por isso que sempre falo que a maior aprendizagem é feita ao vivo e em cores, com muito estímulo e participação da família. E desde então, a Juliana sempre foi muito alegre, muito feliz e até hoje nós aprendemos muito com ela”.
Segundo a Psicopedagoga, todos os estímulos recebidos acabam despertando nas pessoas com síndrome de Down suas habilidades e fortalecendo, assim, áreas importantes, como atenção, concentração, foco, percepção visual e auditiva, oralidade, o que as ensina a expressar da melhor maneira o que elas têm aprendido por meio do lúdico e das brincadeiras, tanto em casa quanto em grupo, na escola.
Quanto aos desafios da vida escolar, Neusa explica que Juliana sempre cursou escolas regulares, sendo a primeira aluna com alguma deficiência em todas as instituições de ensino e sempre foi muito bem acolhida. “Porém, o preconceito sempre vinha dos pais dos outros alunos, pois quando a Juliana tinha algum comportamento inerente a qualquer criança, como se desentender com algum colega de sala, puxar o cabelo, entre outras coisas da idade, o fato era encarado com um peso maior pelo fato dela ter a síndrome de Down. Uma outra situação que enfrentamos em outro colégio, onde havia uma pedagoga que se preocupava, de fato, com a inclusão e recebia com amor alunos com diversas deficiências, é que, exatamente por esse trabalho exemplar dessa profissional, a escola acabou perdendo matrículas de alunos ‘normais’ e teve que fechar”, explica Neusa. Mas, de acordo com ela, vendo a necessidade de continuar o trabalho, a profissional continuou o atendimento em sua casa e, assim, Juliana contou com o seu apoio educacional.
“Dessa forma, a Juliana continuou frequentando escolas regulares e mantendo o reforço particular com essa profissional. Tivemos ainda que enfrentar até abaixo-assinado em uma escola, onde pais pediam para que a Juliana saísse da escola por atrasar o ensino dos demais da sala. Mas, conseguimos superar tudo isso, principalmente com o meu apoio em casa. Entre 8 e 10 anos, ela foi alfabetizada e ela mesma quis aprender a letra cursiva, que hoje é mais bonita que a da minha filha mais velha. A partir daí ela foi para o Fundamental I e as dificuldades foram ainda maiores porque foi então que ela começou a se descobrir diferente das outras crianças, que passaram a constrangê-la. Nada era adaptado, nem mesmo a Educação Física, onde não havia esporte adequado, não havia inclusão social benéfica, ainda mais porque a maturidade e interesses diferentes das outras crianças começou a distanciá-la e ela passou a sofrer solidão, bullying e constrangimento na hora das atividades”, recorda a Psicopedagoga.
Com o período difícil, Neusa relata que os diversos transtornos emocionais, como o de não se sentir pertencente a nenhum grupo, começaram a surgir, aliados a episódios de depressão e a comportamentos inadequados. “Ela ia na carteira do colega e rabiscava o exercício dele, que é a forma como expressava sua frustração, mas as pessoas não entendem que quem tem síndrome de Down tem dificuldade de expressar o que sente. E também não é porque não se expressam verbalmente que significa que não aprenderam. Na maioria das vezes, têm maior conhecimento do que conseguem expressar, assim como as pessoas com autismo não verbais, que não verbalizam todo o conhecimento que têm. Ou seja: é como se nunca tivessem o reconhecimento do que aprenderam”, explica.
O início do projeto Conviver Inclusão
O filho caçula de Neusa estava com 1 ano e meio, quando a empresa onde ela trabalhava ofereceu a oportunidade de fazer um curso de administração mercadológica, na Anhembi Morumbi. Na disciplina de marketing, a sala tinha um trabalho para fazer e os temas foram sorteados entre os grupos. “O tema ONG foi o do meu grupo e então, de cara, pensei no nome Conviver Inclusão. Todos conheciam a Juliana e decidimos fazer um projeto retratando tudo o que eu vinha vivenciando na prática, com entrevistas com fonoaudiólogas, terapeutas e famílias. Foi um trabalho muito rico e eu apresentei com muita dificuldade, porque era minha vida sendo totalmente exposta. Mas, ao final, todos da sala estavam chorando, inclusive o professor, que me desafiou: “se você não colocar em prática esse projeto, eu não vou perdoá-la”. E essa frase ficou na minha mente”, diz.
Porém, a ideia ficou na gaveta, mas o destino estava firme em fazê-la não desistir desse projeto. Quando Juliana estava com 16 anos e o caçula, 6, a filha mais velha resolveu presentear a especialista com uma viagem a passeio para a Bahia, já que Neusa estava enfrentando dificuldades em sua vida pessoal. Lá conheceram uma escola onde todos se encantaram com o desenvolvimento da Juliana. “Onde eu a levava, todos queriam que eu ensinasse a metodologia aplicada em minha filha, pois ela era bem desenvolvida, alegre e sempre muito feliz”.
E, novamente, a vida trouxe uma surpresa a Neusa: a dona da escola, juntamente com a dona do hotel onde estavam hospedados, convidou a especialista a morar em Ilhéus para mudar a inclusão social da região. A psicopedagoga aceitou o desafio e se mudou para a Bahia em 2007. Começou a trabalhar com essa escola, apoiando e ministrando cursos de formação a professores. Além disso, passou a atender em domicílio e a implantar a equoterapia em Ilhéus, já que tinha participado como voluntária ao longo dos dois anos em que Juliana havia sido beneficiada com a terapia quando cursava o Ensino Fundamental I.
“Porém, após o início de diversos projetos promissores e tudo funcionando, fui sendo colocada de lado das iniciativas, como se tivessem utilizado meu conhecimento apenas para a implantação de tudo. Mas, como a vida sempre nos ensina e os baques podem ser encarados de forma positiva ou negativa, naquele momento percebi que eu tinha todo o potencial para ter meu próprio projeto. Como era época de férias escolares e as instituições de ensino apenas fechavam e não ofereciam nada às crianças com deficiência, montei um curso de férias e aí começou o meu trabalho. Fiquei em Ilhéus por quase 8 anos, onde aproveitei para continuar me especializando: fiz psicopedagogia e diversas outras especializações. Ao longo desse tempo, continuei ministrando cursos de formação e oficinas para professores em várias cidades ao redor de Ilhéus para diversos públicos, até em aldeias de indígenas, áreas rurais, onde descobri que as professoras conseguiam alfabetizar com muito amor até com carvão, escrevendo no chão. Ou seja, toda essa experiência me fez conhecer diversos tipos de educadores: aqueles que se sentiam prontos, mas eram engessados e não queriam aprender; outros que eram tão diferenciados por ensinarem com muito amor. E, então, concluí que todos podiam aprender, sendo o principal diferencial o recurso humano e não a estrutura, como normalmente é ressaltada”, relembra.
Em 2014, a especialista voltou para São Paulo e para divulgar seu trabalho criou a página no Facebook do Projeto Conviver Inclusão, que hoje conta com mais de 196 mil seguidores. “Por conta das postagens, passei a receber diversos convites para ministrar cursos e atender em domicílio e, assim, meu trabalho foi sendo conhecido por diversas regiões do Brasil e até do exterior”, afirma. Há ainda a página também no Facebook Apoio Pedagógico Conviver Inclusão, que, segundo a especialista, é restrita e é preciso solicitar amizade para fazer parte da comunidade, onde ela posta vídeos (com autorização dos pais) dos atendimentos para ser uma contribuição às famílias e aos terapeutas sobre a sua metodologia na aplicação das atividades.
Atendimentos
Por conta da pandemia, hoje Neusa faz atendimentos de forma remota e adapta todo o conteúdo pedagógico. “Há pessoas com autismo, por exemplo, que são tão invisíveis e negligenciados que desenvolvem transtornos emocionais severos, o que piora o quadro. Mas sabemos de casos que quando estão em um computador, eles demonstram que conseguem ler e escrever digitando, mas não da forma tradicional de escrever com lápis, o que significa que estão alfabetizados de alguma forma. Ou seja, é preciso que o material seja todo adaptado de acordo com a maturidade neuropsicomotora e de linguagem de cada criança para que ela tenha a chance de se comunicar e expressar dentro das suas possibilidades, mas desde que estas sejam totalmente mapeadas”.
Atualmente, a especialista conta com uma equipe para fazer a adaptação do material pedagógico, além de oferecer todo o suporte à família. “É preciso que os pais descubram mais sobre o seu filho, acreditando no seu potencial e sabendo como apoiá-lo. Muitas vezes as pessoas acham que é preciso ter o suporte de muitos profissionais para que as crianças possam se desenvolver, quando esquecem que o maior apoio que elas precisam é dentro de casa, com a participação da família, ao invés de delegar totalmente aos outros, os profissionais externos. O trabalho deve ser em conjunto e, somente assim, é que fluirá, de fato”.
Apesar de ser algo totalmente inclusivo o trabalho de Neusa ao adequar o material para que a criança com deficiência consiga participar dos mesmos temas que os demais colegas de sala, ela diz que a maioria das escolas não aceita a adaptação. “As escolas não fazem o trabalho delas e também não gostam que nós façamos. A legislação diz que é responsabilidade da escola ter um profissional especializado que acompanhe a criança com deficiência, que faça a adaptação do material e faça parceria com o terapeuta da criança, que é o seu apoio. Como as instituições de ensino não cumprem, sobra tudo para a família, que fica sobrecarregada. Sem contar que tem muita família que não aceita o diagnóstico. Então a criança fica vulnerável em todos os sentidos: se a família não aceitá-la, não compreendê-la, não fizer uma leitura de suas necessidades, não fizer uma parceria com as terapeutas e nem a escola, como fica essa criança? Exatamente por isso que no Conviver Inclusão só aceitamos crianças cuja família está disposta a fazer uma parceria comigo, pois somente dessa forma é que a criança consegue ser alfabetizada”, esclarece.
E foi essa parceria que ajudou Andrea Higa, mãe da Júlia, 11 anos, com Síndrome de Down, a conseguir lidar com a pandemia. “Desde que as aulas foram suspensas, há mais de um ano, me senti órfã, sem direcionamento por parte da escola, porque eles abriram mão de adaptar as atividades e falaram que conseguiriam fazer apenas no presencial, mas no on-line não seria possível. Então, procurei a Neusa há uns três meses e o seu apoio pedagógico está sendo muito importante. Ela passa as atividades, eu faço com a Júlia, filmo e mando os vídeos pra ela avaliar e me dar um feedback do que melhorar. Como não tenho a escola ao meu lado, ter o apoio de uma psicopedagoga que me ajuda e me passa as informações de como devo aplicar as atividades tem sido fundamental, pois cada criança é única e cada uma tem o seu tempo. Mas é um processo que tem que ter persistência, muita paciência e resiliência”, explica Andrea, que conheceu o trabalho de Neusa em 2018 e teve o acompanhamento da especialista por um ano. “Por conta da rotina do meu trabalho e como naquela época era presencial, acabei não conseguindo dar continuidade, mas com a pandemia e o atendimento sendo on-line, agora foi mais que necessário retomar”, diz.
Neusa ressalta que quando se fala em adaptação de material, muitas pessoas cometem o erro do famoso “CTRL C + CTRL V” do que existe na internet. “Cada criança tem uma maturidade psicomotora e contexto social e familiar totalmente diferentes. É essencial conhecer suas áreas de maior habilidade e maior defasagem e como ela consegue responder aos estímulos e aprendizados. Todo o nosso trabalho é personalizado, cada família adquire o seu material único e exclusivo. Na pandemia, para enxugar todas as barreiras que estavam inviabilizando a continuidade dos atendimentos de forma remota, passamos a disponibilizar o material todo em PDF para que a família monte os materiais de acordo com suas condições financeiras”.
E, de acordo com a especialista, a missão do projeto vai além da alfabetização: “trabalhamos a família, acolhendo-a e resgatando-as, oferecendo todo o apoio e, muitas vezes, até ressignificando tudo o que precisamos. Trabalhando não apenas o papel de pai e mãe, mas irmãos dessa criança, porque para ela aprender, a família tem que estar bem.
Fazemos todo o trabalho de programações educacionais adequadas, acompanhamos as famílias com apoio pedagógico de perto”, explica.
Neusa ressalta que o trabalho com as famílias foi ainda mais reforçado por conta da pandemia, pois muitas que não participavam da vida do filho começaram a conhecê-lo em casa, o que as levou ao desespero por não saberem lidar. “Então, mais uma vez, tivemos que trabalhar com essas famílias, que precisaram ser acolhidas principalmente na forma de se relacionar, concretizando e reforçando os vínculos que tinham que ser reforçados”.
A especialista atende pelo WhatsApp: (11) 94949-0692 e as redes sociais do Projeto Conviver Inclusão são: https://www.facebook.com/conviverinclusao e https://www.instagram.com/projetoconviverinclusao/