
Foto do Instagram @alice_neurodiversa
Abril é considerado o mês de Conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA), cujo objetivo é divulgar informações relevantes às famílias, principalmente as que receberam o diagnóstico recentemente. Entre as ações de associações e entidades que lutam pelos direitos da comunidade autista está a disseminação da Comunicação Alternativa (CA) como importante ferramenta de melhora da qualidade de vida, uma vez que permite que as pessoas com TEA se comuniquem e expressem suas ideias, desejos e sentimentos.
“A CA salvou a minha vida, pois antes era extremamente solitário e adoecedor não conseguir dividir o que eu pensava, sentia, achava e queria. As minhas crises diminuíram drasticamente graças a ela, que me ajuda a trabalhar, dar palestras, gravar vídeos, escrever sobre opiniões que tenho sobre diversas coisas, contar o que eu gosto e o que não gosto, sobre meus sonhos, minhas angústias, fazer amigos e ser acolhida”, diz Alice Casimiro, 24 anos, do canal no Instagram @alice_neurodiversa, escritora e ativista. Ela utiliza a Comunicação Alternativa em alta tecnologia – no iPad, com o software TD Snap e o Grid for iPad. No celular Android, utiliza o Assistente de Fala para ter um suporte na ausência do tablet.
A influencer foi apresentada à CA antes mesmo de receber o diagnóstico de autismo. “Eu tinha 19 anos, quando, no mesmo hospital em que fui diagnosticada como autista meses depois, a médica residente em psiquiatria que me atendia me pediu para escrever entre uma consulta e outra para entender o que eu sentia, pois eu não conseguia conversar com ela durante as consultas. Até então, eu dependia do que meus pais relatavam, mas eles não sabiam o que eu sentia de verdade. Apenas tinham suas próprias visões, na maioria, equivocada, sobre os motivos de eu me isolar, não saber conversar, não ter amigos, ter tantas crises de choro e ansiedade e me agredir”, relata.
Segundo Alice, o uso da Comunicação Alternativa nem sempre evita que se desregule, mas reduz as ocasiões que antecedem as crises, pois ela conta que seus pais e as pessoas ao entorno não precisam mais ficar adivinhando o que está acontecendo com ela: “Posso manifestar descontentamento, protestar, dividir ideias, pensamentos angustiantes e pedir ajuda”, salienta. Além disso, Alice, que mora no Rio de Janeiro, ressalta que, por meio da CA, consegue trabalhar e até fez recentemente uma viagem a trabalho para São Paulo:
“Eu consegui meu primeiro emprego em outubro de 2022 com uma vaga afirmativa para Pessoas com Deficiência. Em março de 2023, tive minha primeira viagem a trabalho, que foi também a minha primeira vez em São Paulo. Eu trabalho escrevendo textos como copywriter no time de Design do Jusbrasil. O evento que tivemos foi a Semana de Design, então pude conhecer de perto o time com quem trabalho, já que eu atuo de forma remota e geralmente assíncrona. Foi uma experiência fantástica para mim. Quando soube do evento, fiquei desanimada, pois sabia que viajar sozinha para outro estado estava fora de possibilidade, mas a empresa, quando soube que eu não conseguiria viajar sem assistência, se organizou para me dar todo o suporte necessário. Arcaram com a ida da minha mãe junto comigo, os colegas agiram com naturalidade a ela no escritório no primeiro dia do evento, além de ter uma salinha do silêncio só para mim, a qual eu podia ir sempre que me sentisse sobrecarregada. Eu não precisava ficar e participar de tudo, os colegas sempre perguntavam como eu estava, fiquei com o tablet o tempo todo. Outra colega lia em voz alta para os outros o que eu escrevia nele quando eu queria dizer algo em público, tivemos um painel de diversidade e inclusão, e foi tudo muito legal. Às vezes, ainda tenho dificuldade de acreditar na sorte que tive, pois vivi na pele a exclusão do mercado de trabalho que normalmente acontece com as pessoas com deficiência: já tive oportunidades negadas durante 2 anos em que mandei currículos. Quando chegou a hora de embarcar para voltar para casa, eu chorei porque não queria ir embora e deixar de estar pessoalmente com meu time tão acolhedor, respeitoso e inclusivo”, emociona-se Alice.
História de vida
“Nasci no final dos anos 1990. Mal se falava sobre autismo, muito menos na população feminina. Quando eu era criança, não tínhamos acesso a profissionais especialistas, e poucos eram os que faziam esse diagnóstico. Os que faziam, eram particulares e estavam fora do alcance dos meus pais, tanto financeiramente quanto em conhecimento. Quando conheço autistas da minha idade diagnosticados na infância no Rio de Janeiro, ouço citarem médicos neurologistas, cujos nomes realmente se repetem muito, o que mostra que eram profissionais restritos em número, realidade bem diferente de hoje em dia, em que até pediatras já costumam ter algum conhecimento. Para a minha família, eu era diferente e tinha muitas manias estranhas, mas havia a esperança de que iria passar com a idade. A questão é que os atrasos e comportamentos não eram uma fase, mas sim uma deficiência do neurodesenvolvimento, ou seja, para a vida toda, então tudo apenas foi se acentuando gradativamente até que eles passaram a ficar bem preocupados, mas ainda sem saber o que fazer. Eu sempre ouvia sobre como meu futuro iria ser difícil se eu continuasse como estava. Quando cheguei numa idade em que se espera que a pessoa tenha mais independência, eu simplesmente não tinha e estava muito atrás da mesma idade. Isso frustrava muito minha família e a mim, que era cobrada e nunca correspondia. Acabei desenvolvendo transtornos mentais, como ansiedade e depressão, o que nos levou ao primeiro contato com uma psiquiatra. Infelizmente, era do plano de saúde, então apenas consultas de 10 minutos com minha mãe relatando as queixas sobre mim, a médica ouvindo rápido e receitando um monte de remédios. Eu só fui ter acesso a uma equipe qualificada aos 19, num hospital universitário, e poucos meses depois que tive o diagnóstico de autismo. O de TDAH veio ainda depois, graças a uma avaliação neuropsicóloga com uma profissional particular que não me cobrou. Foi aí que descobrimos não apenas o TDAH, mas que meu autismo é nível 2 de suporte ou moderado”, relembra Alice.
Ainda assim, com todas as dificuldades enfrentadas, ela não desistiu dos seus sonhos, como cursar o ensino superior: formou-se em Letras. “Eu escolhi Letras porque gostava das aulas de português na escola, tinha facilidade para a escrita e tinha dificuldade com a maioria das outras matérias. Por estar bem mais depressiva na época do Ensino Médio e pela disfunção executiva, eu não consegui estudar nada para o vestibular. Nos dois dias de prova, uma boa parte do cartão resposta ficou em branco. Como o curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) dava peso 3 para a nota da redação, essa foi minha primeira opção. Era o único curso em que eu teria vantagem para passar pelo meu desempenho no ENEM”, diz.
Alice relembra ainda que precisou de bastante suporte para concluir o curso em 6 anos. “Eu não tinha o diagnóstico nos primeiros 2 anos do curso, mas, para minha sorte, dois colegas me acolheram e viraram mais do que meus amigos. Eles foram como mediadores, que me explicavam, me ajudavam a resolver burocracias, sempre estavam nas mesmas aulas comigo, faziam os trabalhos e as avaliações em grupo junto, estudávamos juntos. Isso por si só fez toda a diferença. A parte de literatura eu realmente não conseguia entender muita coisa. Como as avaliações eram trabalhos e normalmente em grupo, eu consegui superar por escrever bem e ter explicação dos meus amigos. Depois do diagnóstico, passei a ter ajuda de uma psicopedagoga da faculdade, e alguns professores fizeram adaptações para mim. Quando cheguei ao final da graduação, tivemos a pandemia, fiz as últimas aulas on-line e, com isso, perdi o apoio de perto dos meus dois amigos. O que aconteceu foi que, mesmo terminando todas as matérias, fiquei mais de um ano sem progresso algum na monografia. Eu já não precisava fazer estágio, pois mudei da licenciatura para bacharelado por estar muito puxado para mim. E, por sorte, quem entrou na época em que eu entrei foi isento de precisar cumprir horas de extensão, coisa que eu não consegui também de jeito nenhum. Com isso, ficou faltando só a monografia, com a qual eu não conseguia progredir por falta do suporte de perto e por entrar num burnout.
Passou-se um ano em que fiquei em casa sem conseguir fazer nada, sem ter mais aulas para assistir e devendo apenas a monografia. Felizmente, consegui pedir ajuda para a minha psicopedagoga, que entrou em contato com a faculdade e falou com a minha orientadora. Adaptaram totalmente o formato da monografia para mim. A orientadora ajudou a escrever algumas partes, e outras retirou diretamente do meu blog sobre autismo. Por fim, ficou algo bem menor, com menos exigências e aproveitando textos que eu já havia escrito, o que possibilitou que eu entregasse a monografia e me formasse”, salienta sobre a importância das pessoas com deficiência pedirem ajuda às instituições de ensino.
Alice deixa ainda a seguinte mensagem às pessoas com deficiência neste mês de conscientização do autismo: “Não se contente com a forma como te veem e te tratam. Aguente firme, tenha esperança e se cerque das pessoas certas, que te respeitam e amam como é, que vão estar ao seu lado em todos os momentos. Não se sinta inferior porque te tratam diferente. Isso é uma falha de quem faz isso, não sua. Sua voz importa e merece ser ouvida como qualquer outra, independente da forma como você a utiliza”.
À sociedade, a influencer sugere a seguinte reflexão, tão importante para que tenhamos um mundo, de fato, inclusivo: “Que vocês possam presumir competência, nos dar oportunidades, respeitar nossos direitos, não nos silenciar, nos convidar para os eventos, ser nossos amigos e nos incluir sempre que puderem. Não se intimidem pelo nosso jeito diferente, pois não quer dizer que amamos menos. Não falar ou falar pouco não significa, de forma alguma, não pensar ou pensar pouco. Não somos angelicais ou crianças eternas. Somos pessoas que crescem e querem ter qualidade de vida e sua própria autonomia. Com inclusão e adaptações, podemos ir longe”.
A Terapeuta Ocupacional Rayssa Beder propõe ainda uma reflexão aos educadores: “Aprendizagem e protagonismo pessoal são conceitos que caminham lado a lado, aprender também é vivenciar, atribuir significado, registrar na memória e resgatar a informação quando necessário. Compreender as Necessidades Educacionais Específicas dos estudantes da sua escola ou sala de aula significa compreender de que maneira as ações em Inclusão Escolar serão direcionadas, como serão pensadas as atividades e o planejamento pedagógico, de que maneira aquele estudante terá contato com a proposta pedagógica e que vivências serão promotoras de aprendizagem. Diante de tantos termos, eu escolhi falar em Aprendizagem Neurodiversa, de um processo de aprendizagem que é livre, que parte das potencialidades da pessoa e de suas preferências. Resolvi falar sobre aprendizagem que possui significado, sobretudo, para os “não típicos”, para crianças e adolescentes que saem de casa e vão para escola na expectativa de fazer, de descobrir, de existir. Então, por mais difícil que isso possa parecer ou ainda um tanto revolucionário, não espere que todo mundo aprenda da mesma forma, não espere que o diagnóstico determine quem aprende e quem não aprende, apenas não espere… Vamos juntos derrubar as barreiras atitudinais e olhar com empatia e respeito para todos aqueles que na sua diferença e diversidade nos ensinam o significado da expressão ‘ser único é ser incrível!’”.
Instagram: @rayssabeder