
“É necessário falarmos sobre o quanto a ansiedade das famílias – tão comum nos atendimentos com a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA) – pode prejudicar a evolução dos trabalhos, não só dos profissionais envolvidos nas diferentes modalidades terapêuticas, quanto do próprio paciente”, diz a psicóloga Claudia Alexandra Goés*, professora aposentada da prefeitura do RJ, que trabalhou 34 anos em uma escola especial, com crianças com múltiplas deficiências, e hoje atende crianças autistas e com deficiências físicas com a CAA.
“Falar de comunicação alternativa para as famílias que possuem filhos sem linguagem oral funcional é sempre muito importante. Estas famílias, normalmente, chegam ao consultório ansiosas por não conseguirem se comunicar com a criança. É comum relatarem que não sabem o que seus filhos estão sentindo por não se comunicarem com ele. A falta de uma comunicação gera uma ansiedade natural que pode levar à angústia, estresse e outras comorbidades. Com isso, o primeiro passo é mostrar para essa família que, independente da deficiência e de sua limitação motora ou comunicativa, toda pessoa (criança, adolescente ou adulto), apresenta, de alguma forma, um código de comunicação, pelo menos, para o ‘sim’ e ‘não’. Diante da rotina familiar, realizada de uma forma natural (a família ou cuidadores já conhecem as necessidades do paciente tais como; os horários que ele precisa se alimentar, trocar fralda, ir ao banheiro, tomar banho, entre outros) deixa de ser um momento de interação e troca comunicativa. Por exemplo, na hora de dar água, o familiar ou cuidador, oferece a mamadeira ou o copo com a água sem as intervenções terapêuticas necessárias (perguntando se ele está com sede). A mesma coisa acontece nos diferentes contextos da rotina do paciente. Quando ele reage negativamente diante de alguma atividade que não queira realizar (chorando, movimentando-se na cadeira, fechando a boca como forma de rejeitar o alimento), gera a ansiedade na família por não compreender o que representam aqueles comportamentos, que ocorrem em momentos importantes da rotina da criança”, explica Claudia.
De acordo com a especialista, exatamente por isso é que logo na primeira consulta ela pede para que a família traga o paciente para observar a existência de algum ‘código de sim e não’, que, em caso positivo deve ser aproveitado pelo terapeuta e sinalizado aos familiares. Este código passará a ser o meio através do qual a interação será efetivada. “Muitas vezes, nessa primeira entrevista, é comum perguntarmos às mães como é que o filho se comunica e elas não saberem responder. Esta resposta mostra, em alguns casos, que a família, por desconhecer essa possibilidade de comunicação ainda não observou que a criança pode ‘falar através de gestos, movimentos corporais, expressões faciais, sorriso, choro’. Por exemplo, um paciente que só mova os olhos, provavelmente, irá comunicar-se piscando algumas vezes para representar um sim ou não, olhando para direita ou para esquerda, para cima e para baixo ou, até mesmo, balançar a cabeça representando sinal de positivo ou negativo. Com isso, o meu objetivo maior nesse primeiro contato é mostrar pra essa família que ela está diante de uma criança que não fala, que não tem a voz, porém apresenta certa compreensão do que é falado, que tem a possibilidade de se comunicar mesmo com as limitações que possui e que muitas vezes ela já traz essa comunicação e apenas a família por desconhecer estas alternativas de comunicação não havia percebido ainda”, explica Claudia.
Segundo a psicóloga, normalmente a família chega no consultório preocupada com o choro da criança, com o não compreender o que a criança quer expressar. Este comportamento, que na verdade é natural, é o fator desencadeante para o surgimento do processo de ansiedade. A ansiedade chamada preocupação, faz com que a família busque a comunicação alternativa e ampliada. “Podemos dar como exemplo o comportamento de alguns pacientes autistas. Estes exploram os espaços e manipulam os objetos, mas em algumas vezes, essa manipulação não apresenta a intenção de atribuir a eles suas funções. Isso desperta na família a necessidade de organização comportamental desta criança, pois todas as suas respostas são através dos seus comportamentos. Além da ansiedade implícita neste comportamento, isso demonstra que a família necessita de orientações antes de começarmos a trabalhar com a CAA. O ideal é que seja realizado um trabalho de apoio e orientação com essa família e, então, traçamos um planejamento colaborativo para que ambos caminhem juntos – terapeuta e família – buscando objetivos comuns, porque não vai adiantar o terapeuta desenvolver um trabalho de limite, atenção e concentração, mostrando o caminho que o paciente deverá permanecer por apenas 45 minutos. A família sendo acolhida, orientada e supervisionada dará continuidade ao trabalho do terapeuta. Com isso, percebe-se que a parceria entre a família e o profissional é fundamental neste processo para que, feitos os ajustes necessários, consigamos iniciar a CAA”, esclarece.
De acordo com ela, no caso das crianças com deficiência física é mais difícil os sinais da ansiedade da família estarem visíveis no paciente, porque, muitas vezes a dificuldade motora e a falta de linguagem oral funcional é extrema e o único movimento que a criança tem pode ser somente com os movimentos dos olhos, por exemplo. “Porém, quando é utilizada a CAA e o vocabulário está presente em imagens que remetem à ansiedade, sentimentos, avaliação como “gostei” e “não gostei” os pacientes começam a expressar suas opiniões, como, por exemplo, dizem que não gostam de purê de batata e preferem batata frita, na hora da alimentação. É uma manifestação mais difícil de ser percebida no dia a dia, mas quando é trabalhada a comunicação com recursos adequados, o paciente se expressa. Por isso é importante que a construção das pranchas de CAA seja adequada à realidade cognitiva do paciente, levando em consideração os seus interesses, a idade, o vocabulário, além das adaptações visuais que deverão ser realizadas”, explica Claudia.
A especialista ressalta ainda a importância de todos os profissionais que estejam atendendo o paciente com a CAA, que façam um trabalho interdisciplinar, pois dará a oportunidade do paciente se comunicar em todos os espaços onde ele estiver inserido, e dessa forma, amenizará a ansiedade que o familiar apresenta não só em relação à comunicação alternativa, mas em relação à evolução do paciente em todas as área de atendimento. “O material da CAA deverá ser utilizado por todos os profissionais que atuem com o paciente: professores, mediadores, família e terapeutas, pois oportunizará um momento de voz e de participação efetiva em todas as terapias e espaços sociais que frequentar. Poderá escolher o que deseja comer, beber, vestir, lugar onde deseja passear, brinquedos que utilizar, a escolha da atividade que deseja fazer na escola, se precisa ou não de ajuda para compreender o conteúdo pedagógico apresentado pelo professor, se as terapias são prazerosas, se gosta ou não gosta de alguma terapia e o porquê, entre outras possibilidades. Dessa forma, a família estando inserida em um trabalho interdisciplinar, participando a partir do momento do planejamento, percebendo as dificuldades, valorizando as conquistas e evoluções tende a ficar menos ansiosa e as terapias vão fluindo e todos têm a oportunidade de se comunicar, inclusive o paciente, que passa também a ser compreendido por todos os terapeutas”, esclarece.
Cases de sucesso no atendimento com a CAA

A psicóloga relata um caso de eficácia da CAA que marcou sua vida: “o quanto a comunicação alternativa pode realmente dar a voz às pessoas e do quanto ela é importante na medida em que se torna instrumento para que as pessoas possam expressar os seus sentimentos, acima de tudo. Eu vou falar sobre a Samira, uma jovem que na época tinha dezoito para dezenove anos, minha aluna quando eu era professora de uma escola especial da prefeitura. Nesse mesmo ano, conheci a comunicação alternativa por lecionar numa turma de oito jovens com paralisia cerebral sem nenhum comprometimento cognitivo, entre eles, estava a Samira. Eram sete deficientes físicos, sem nenhum comprometimento intelectual e um aluno, o Heron, que não tinha deficiência física, apresentava apenas uma deficiência intelectual moderada e por isso estava na escola especial. E ele era muito bonito, gentil, educado e era aquele aluno que colaborava com toda a turma, visto que ele não tinha nenhum comprometimento motor. A necessidade da turma em aprender a CAA era muito grande porque eu sentia que eles precisavam se comunicar. Foi então que busquei ajuda como uma pesquisadora da UERJ e comecei a trabalhar a CAA de uma forma bem simples e a produzir alguns materiais, como cartões com imagens. Até que em uma atividade, um aluno tinha que escolher um colega e fazer uma solicitação por meio dos cartões, que estavam todos dispostos no mural. Eu pegava a cadeira, levava o aluno para que escolhesse os cartões de modo a construir a frase para que o colega pudesse realizar a ação. Quando chegou a vez de Samira, a jovem apontou para os cartões e a frase montada dizia que ela gostaria que o Heron levasse a cadeira de rodas dela para o refeitório. Então, veio logo na minha cabeça: como são todos jovens e eles gostam de paquerar, se apaixonam admiram os colegas. Ela estava apaixonada por ele. Eu fiquei muito emocionada ao ver que em uma primeira atividade coletiva de pura interação, que envolvia toda a turma e com apenas um mês de uso da CAA, tinha dado esse resultado: o quanto a Samira ficou feliz em poder expressar os sentimentos ao Heron. Ou seja, é tão lindo ver que esses jovens podem se expressar a partir de um recurso aparentemente tão simples”, emociona-se Claudia.

Outro caso que a psicóloga relata é da Mariana, uma paciente que atendeu, e na época tinha nove anos. “Na entrevista inicial a mãe havia relatado que a filha não tinha nenhum tipo de comunicação. Interagindo com ambas, comecei a observar se ela já tinha algum código pra sim e não e fui pedindo as informações a respeito do vocabulário. Quando eu cheguei na parte da alimentação perguntei o que Mariana gostava de comer ela começou a sorrir. Então eu falei: se falamos em comidinha e você já deu um sorriso, você gosta de comer coisa gostosa? Responde pra mim e pra mamãe, você gosta de comer coisas gostosas? Ela sorriu e piscou o olho. Aí sinalizei para mãe e falei assim: olha só, ela sorriu e piscou os olhos. E a mãe respondeu: mas ela pisca sempre, então eu disse: vamos verificar se esse piscar pode ser uma resposta positiva? Mariana, se você sorriu e piscou os olhinhos quando a tia Cláudia perguntou, se você está querendo dizer que sim, confirma que esse é o seu jeito de me dizer que sim? E então ela piscou e sorriu.
Comecei a perguntar se ela gostava de outros alimentos, como biscoito de chocolate. E ela confirmou novamente. Quando perguntei sobre limão, ela tentou sacudir a cabeça, discretamente, no sentido de não. Quando a mãe disse que ela gostava de sopa, ela sorriu e piscou o olho. Eu falei: você está mostrando para a tia Cláudia que você gosta de sopa? Deixa eu te fazer uma pergunta: você quer tomar sopa agora? Você está com fome? (era por volta das 10h). E ela ‘disse’ que sim. A mãe então falou: mas como, Mariana, você acabou de comer e agora você só vai almoçar meio-dia quando chegar em casa. A Mariana ficou séria. Perguntei novamente: responde pra tia Claudia, você está com fome? Sim ou não? Ela respondeu que sim. Na sessão seguinte, a mãe relatou que naquele dia, chegando em casa por volta das 11h, ela ofereceu a sopa e a Mariana comeu tudo, sendo que normalmente ela só comeria às 12h. Perguntada se ela sempre tinha fome neste horário, Mariana responde que sim. A partir daquele momento, ela iria passar alguns lanches até chegar a hora do almoço, pois não imaginava que a filha sentia fome entre o café e o almoço. Ou seja, a Mariana já tinha um sistema de comunicação, mas a mãe que ainda não tinha conseguido observar por falta de conhecimento técnico, o que é muito comum de acontecer”, explica a especialista.
“Outro atendimento bastante interessante é sobre um aluno chamado Riquelme, na época com 19 anos. Ele era atendido por mim numa clínica de reabilitação, onde existiam diversas modalidades terapêuticas. Ele apresentou uma resistência enorme de interação e foram quase três para quatro meses em que eu fazia de tudo pra que ele me respondesse e me olhasse e ele não respondia, não esboçava nenhuma reação. Depois de algumas tentativas de interação, completamente frustradas, busquei ajuda das minhas colegas que o atendiam para que me ajudassem e mostrassem a importância dele se comunicar, mas ele estava irredutível e nada adiantou. Até que ele faltou por duas semanas e quando ele retornou, fui informada que ele tinha uma convulsão, um pouco séria e que tinha ficado em repouso por indicação médica. Quando retornou à sessão, ele teve uma primeira ausência, que não chegou a ser uma crise convulsiva, mas eu fiquei observando. Teve uma segunda ausência a seguir mais longa e quando ia iniciar a terceira ausência, chamei a mãe e nós começamos a conversar. Eu com todos os cartões referentes ao seu vocabulário dispostos em cima da mesa, na frente dele, eu disse: preciso da sua ajuda. Você está passando por um momento difícil de saúde, questões da sua vida, muito sério e importante, eu preciso que você me ajude a te ajudar. Agora é a hora de você perceber que pode e vai se comunicar conosco através dos cartões. Nós temos aqui um vocabulário e mostrei para ele os cartões de sim e não. Afinal, eu não sabia até então se ele já possuía algum código de comunicação ou não porque nunca tinha esboçado nenhuma reação. Enfatizei: eu preciso saber o que acontecendo, se você já está se sentindo melhor para que nós possamos ver o que fazer, tanto eu quanto a sua mãe. Fui imediatamente pelos cartões das emoções: comecei a perguntar se ele sentia alguma coisa quando ia ter alguma ausência. Então ele começou a se comunicar, respondendo com os cartões de sim. E eu continuei perguntando: você sente dor de cabeça? Ele disse que sim. E agora, você tá sentindo alguma coisa? Ele disse que sim. Aí eu perguntei, você está com dor de cabeça? Ele disse que sim. Então falei: você está vendo o quanto é importante nós podermos nos comunicar?
E continuei: eu preciso saber uma coisa, você agora está com dor de cabeça? Sim, ele respondeu. Quando você tem ausência ou quando você tem convulsão você sente dor de cabeça? Ele confirmou novamente. Perguntei então se a mãe dele poderia dar a ele um remédio para dor de cabeça e ele aceitou. A mãe neste momento começou a chorar. Por ser extremamente participativa, mas não conseguia se comunicar com ele, não sabia que a cada crise convulsiva ou ausência ele sofria com dor de cabeça. Descobrimos que esses momentos de ausência ou quando ele tinha crises convulsivas o faziam se sentir envergonhado e triste, mesmo na cadeira de rodas. E, assim, juntamente com os medicamentos necessários e conhecendo os sentimentos dele, a relação entre eles ficou mais leve. Hoje, ele é um paciente que se comunica amplamente através da prancha de comunicação, por meio da qual interage, conversa, faz fofocas, diz que sente ciúmes da mãe. Enfim, eles hoje mantém uma relação normal, saudável com as suas limitações, porém ele faz as suas próprias escolhas, como de querer uma televisão para o quarto pra assistir futebol, porque não queria dividir os momentos de futebol na sala. Ele queria torcer para o seu time sem que ninguém o perturbasse. Mais uma vez a comunicação alternativa fazendo a diferença em um momento de muita relevância na vida do usuário”.

*Claudia Alexandra Goés de Araújo é professora aposentada, atuou 34 anos com classes especiais de uma Escola Especial da Prefeitura do RJ, Psicóloga, Psicanalista, Psicopedagoga, integrante do Grupo de pesquisa em CAA no LATECA – UERJ e Mestre em Educação pela UERJ. Atualmente, coordena o Espaço Terapêutico Conversando com Símbolos, onde realiza atendimentos de CAA utilizando o Tobii como instrumento para comunicação e interação.