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Alfabetização Corporal:

quando o corpo se torna ponto de partida para o desenvolvimento de pessoas atípicas

Foto de Cida deitada ao lado de sua aluna Cecilia. Ambas olham para câmera sorrindo. Cida está usando máscara e faz um sinal de V com a mão.

Quando pensamos na arte da dança, logo nos vem à mente seu conceito: uma linguagem expressiva que utiliza movimentos ritmados do corpo, geralmente acompanhados por música ou sons, e que pode ser vivenciada individualmente ou em grupo, por pessoas de todas as idades. Fundamentada nos elementos de corpo, espaço e tempo, a dança se manifesta como expressão cultural, comunicação, entretenimento, ritual e também como prática profissional. Mas, você sabia que ela vai muito além disso? A dança tem um papel profundo no desenvolvimento emocional, cognitivo e sensorial de quem a pratica, ainda mais no caso de pessoas com deficiência.

“Sentir, perceber e agir! Esse é o caminho que o corpo percorre em seu processo de aprendizado. Os estímulos sensoriais são conduzidos a regiões específicas do cérebro, onde são integrados e convertidos em sensações e percepções, resultando em respostas motoras, viscerais e glandulares. Podemos dizer que as imagens iluminam a mente, os sons fazem o cérebro dançar, os aromas e sabores nutrem as células e os movimentos nos situam no espaço. É o milagre da vida! Na dança, dentro da abordagem da educação somática, essa tríade – sentir, perceber e agir – cria um caminho poético e pedagógico. A atenção recai sobre a vivência corporal e sobre o sentir do movimento, integrando sensação, emoção e aprendizagem. O corpo é visto como organismo vivo, inteligente e expressivo, capaz de se reorganizar e se transformar”, salienta Cida Donato, bacharel em Artes Cênicas, pesquisadora, Profª de Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Drª em Ciência da Literatura, Ms. Ciência da Arte, com especializações em Conscientização do Movimento, Jogos Corporais e Psicomotricidade.

Ela é fundadora da Metodologia Alfabetização Corporal (sensório-psicomotricidade), que deu origem, em 2013, ao projeto de mesmo nome na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao longo dos anos, a Metodologia foi sendo estruturada, mas sua premissa central, que é simples e potente, sempre foi mantida: antes de qualquer símbolo ou letra, a criança lê o mundo por meio dos sentidos, do movimento e das emoções. O corpo, portanto, deve ser o ponto inicial da aprendizagem.

Dessa forma, o projeto deu origem ao Laboratório de Alfabetização Corporal da UFRJ e, desde então, vem possibilitando que crianças, jovens e adultos atípicos possam potencializar o corpo em sua globalidade, estimulando, assim, processos de aprendizagem. Entre as principais características proporcionadas pela Metodologia, estão: 

Consciência corporal: foco na percepção de ossos, músculos, respiração, pele, fluídos e articulações.

Integração sensório-psicomotora: movimento nasce da relação entre sensação interna e estímulo externo.

Escuta do corpo: reconhecimento dos limites, tensões, apoios e fluxos.

Criação autêntica: a expressão surge de dentro para fora, sem formas impostas.

Dimensão terapêutica: promove bem-estar, reorganização postural, liberação de tensões e ampliação da autoimagem. 

“Se alfa é a primeira letra, o início de tudo, na Alfabetização Corporal ele simboliza o ponto inicial da aprendizagem: aquilo que inaugura a experiência do sujeito com o corpo. É o primeiro gesto que abre caminho para a expressão, assim como o “A” abre o caminho para as palavras. Por isso, a Metodologia parte do princípio de que o corpo precisa ser alfabetizado antes de qualquer ensinamento simbólico. As crianças típicas não apresentam barreiras sensório-psicomotoras significativas que as impeçam de vivenciar e experimentar o mundo com o próprio corpo. Pulam, correm, brincam na lama, se pintam, deslizam, andam de bicicleta… São atividades fundamentais para a continuidade do desenvolvimento do sistema nervoso após o nascimento, pois favorecem a formação de sinapses e a organização global. Já as crianças atípicas não conseguem realizar essas atividades sem suporte. Por isso, as propostas precisam ser direcionadas às suas necessidades e constantemente repensadas, de acordo com as respostas que apresentam ao longo do desenvolvimento. Para além das funções motoras básicas, buscamos também o aprendizado do movimento: como o pezinho ou a mãozinha se movem, como a cabeça pode ser sustentada. Essa é a peculiaridade da Metodologia: olhar a criança em sua plenitude. Se hoje ela apresenta uma desordem no campo das emoções, recorremos aos conhecimentos da fisiologia, da psicomotricidade e da conscientização do corpo pelo movimento para ajudá-la a se autorregular. Isso porque o cérebro da criança neurodiversa não se autorregula sem auxílio. Assim, o maior benefício da Metodologia está em sua proposta de potencializar a capacidade de aprendizagem que cada criança possui, respeitando a singularidade e os limites de cada uma”, destaca Cida. 

Entre os casos marcantes, está a trajetória da pequena Cecília, 7 anos, que tem paralisia cerebral e participa das atividades do Projeto Alfabetização Corporal desde os 8 meses de idade. Segundo Cida, a Metodologia contribuiu para: “regular as emoções, deixá-la disponível para o aprendizado (principalmente nos quatro primeiros aninhos), trabalhar o tônus – que muitos acreditam depender apenas de exercícios, quando na verdade é um fator neurofisiológico —, o equilíbrio e outros aspectos certamente traz uma grande contribuição para o seu desenvolvimento”. Ela salienta ainda que, muitas vezes, a Metodologia não tem como foco apenas a dança: “Há alguns anos, o trabalho com a Cecília estava mais voltado para o desenvolvimento das habilidades motoras e cognitivas básicas. Com a ida dela para a escola, houve um esgotamento e fizemos uma pausa. Mas, infelizmente, Cecília ficou com o sensorial desorganizado, o que afetou suas reações emocionais. Então ela voltou para o Projeto e foi nesse momento que comecei a utilizar os movimentos e as pressões para reorganizar suas sensações e percepções, chegando à dança somática, o que contribuiu para melhorar o seu equilíbrio. A partir daí, Cecília não quis mais outra atividade… só quer dançar!”, diverte-se Cida, que compartilha no Instagram momentos encantadores dos atendimentos, como os de Cecília: https://www.instagram.com/p/DNozTVnx9f3/

Como surgiu o Projeto Alfabetização Corporal

“À época, em 2012, eu era professora concursada da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC), na unidade Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ). Embora a instituição não exigisse dedicação à pesquisa, sempre senti necessidade de realizá-la. Elaborei um projeto sobre o estudo de danças dramáticas e o submeti à Fundação de Pesquisas do Rio de Janeiro (FAPERJ). Dessa forma, fui contemplada com um auxílio de R$ 20.000,00, que foi destinado a equipar uma sala para atividades corporais e, assim, iniciei as ações. No entanto, inicialmente, eu não pensava em trabalhar com pessoas com deficiência, mas uma amiga, também professora da FAETEC, na Escola Especial Favo de Mel, pediu que eu desenvolvesse um projeto de dança com a turma dela (adultos com alto grau de comprometimento intelectual, alguns também com comprometimento motor e síndromes). Assim começamos. Eu não sabia nada sobre inclusão, nunca havia trabalhado com educação inclusiva e tampouco me interessava pelo tema. Mesmo assim, aceitei o convite. Envolvi meus alunos do curso de Pedagogia do ISERJ e, posteriormente, quando ingressei no quadro da UFRJ, em 2013, também os alunos do curso de Dança. Fomos observando resultados importantes naqueles adultos, dos quais quase nada se esperava. Assim fui entrando nesse universo da deficiência e me apaixonando”, relembra a especialista

Cida explica ainda que as coisas foram acontecendo aos poucos, sem planejamento aparentemente, mas para o destino sua missão de vida já estava sendo traçada: “Em 2010, iniciei um pós-doutorado na Universidade de Brasília (UnB), na área de Engenharia Computacional. Levei como material de pesquisa os registros e relatos do trabalho desenvolvido na Escola Especial Favo de Mel. A partir deles, passamos a criar tecnologias para a monitoração de sinais vitais – observamos que as respostas motoras dos alunos da Favo eram completamente diferentes quando conduzidas pela dança: a respiração se organizava, a atenção se tornava mais focada, os movimentos se expandiam. Foi nesse momento que compreendi que o trabalho deveria ser exclusivamente corporal e lúdico. Assim, ao concluir o pós-doutorado, realizei uma especialização em Conscientização do Movimento e Jogos Corporais na Faculdade Angel Vianna. Essa formação abriu muitos horizontes. Já na UFRJ, recebi extensionistas dos cursos de Dança, o que fortaleceu ainda mais esse campo dentro do projeto”, destaca Cida Donato. 

Assim, munida de conhecimentos diversos, a especialista fundou o Projeto Alfabetização Corporal na UFRJ e a parceria com a Favo de Mel continuou até 2017, quando pediu exoneração da FAETEC e se tornou professora com dedicação exclusiva à UFRJ. “Nessa época, em 2018, minha sobrinha-neta nasceu e, devido a complicações no parto, ficou com paralisia cerebral (PC). Passei a atendê-la, adaptando para a bebê todos os conhecimentos que havia adquirido. Percebi, então, a necessidade de focar especificamente no desenvolvimento de crianças com PC. Para isso, aprofundei meus estudos em neurofisiologia e realizei uma especialização em psicomotricidade –  para um bebê, a psicomotricidade é bastante específica, ainda mais quando há deficiência motora. Por isso, passei a trabalhar a sensório-psicomotricidade, que consiste em estimular o sistema somatossensorial da criança para abrir canais de processamento cognitivo e favorecer respostas motoras”, diz Cida, que passou, desde então, a focar o projeto em pessoas com PC. 

E, percebendo a necessidade de levar a Metodologia Alfabetização Corporal a mais profissionais que atendem pessoas atípicas, a especialista conta que passou a ministrar cursos de capacitação: “Neste ano, começamos a oferecer um curso para interessados e também a implementar, na Petite Danse, uma modalidade de dança baseada nos princípios da Metodologia. No próximo ano, iniciarei mais um pós-doutorado, desta vez na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), por meio do qual ensinarei a Metodologia a graduandos e pós-graduandos do Centro de Educação. Creio que, a partir daí, estaremos de fato preparando profissionais para atuarem com a Metodologia Alfabetização Corporal”. 

Cida Donato ministra ainda cursos sobre massagem corporal correta a profissionais que atuam com pessoas atípicas, uma vez que, segundo ela, a pressão como é feita nos músculos pode prejudicar ainda mais casos de hipotonias ou hipertonias. Os interessados podem enviar mensagem pelo seu Instagram: https://www.instagram.com/cida_donato/

Redação Civiam

Entrevistas, histórias reais e conteúdo sobre diversos aspectos ligados às Tecnologias Assistivas e à educação na saúde.

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