
A situação da pandemia fez o mundo se tornar, praticamente, digital. E, por conta disso, diversas pessoas se viram com dificuldades em aderir a essa nova realidade, principalmente pelo fato da grande maioria dos sites não ser acessível a todas as pessoas, seja por conta de deficiências, como as cegas, seja pela falta de familiaridade com a tecnologia, como os idosos.
Consequentemente, a situação trouxe à tona um dos assuntos mais discutidos ultimamente: a acessibilidade digital. “É preciso desmistificar que acessibilidade digital está focada apenas em pessoas com algum tipo de deficiência, na verdade acessibilidade digital é algo que promove o acesso à informação para todas as pessoas, independente de quem sejam ou de suas deficiências ou habilidades. Quando falamos em acesso às informações nos meios digitais, também estamos falando de direito de todos”, alerta Marcelo Sales*, Designer, idealizador do projeto Todos por Acessibilidade e do Guia WCAG (Web Content Accessibility Guideline).
Para exemplificar, o especialista cita a dificuldade dos idosos: “Muito se fala na acessibilidade de pessoas que poderiam necessitar auxílio para concluir tarefas em um ambiente digital, como é o caso dos idosos. Atualmente algumas dessas pessoas podem estar isoladas e sem contato com familiares ou amigos que antes os ajudavam a efetuar uma compra online ou mesmo agendar o pagamento de uma conta em um aplicativo bancário. Será que os sites e aplicativos estão acessíveis a esse público? Caso o desenvolvimento desses conteúdos levasse em consideração as diretrizes de acessibilidade, provavelmente estariam, mesmo que esses grupos de pessoas não tivessem participado de pesquisas de uso dos produtos, no entanto há falhas nessa aplicação ocasionando a dificuldade no acesso”, avalia.
Porém, apesar de parecer algo “óbvio” garantir a acessibilidade da informação a todos, um dos grandes motivos que justificam que a grande maioria dos sites ainda não é acessível é a complexidade da questão: há 78 Diretrizes de Acessibilidade para o Conteúdo da Web (do inglês Web Content Accessibility Guidelines/WCAG), que são recomendações organizadas e mantidas pelo W3C (World Wide Web Consortium), principal organização mundial de padronização da World Wide Web e com mais de 450 membros de diversas áreas (empresas, órgãos governamentais, organizações independentes) com a finalidade de estabelecer padrões para a criação de conteúdos para a web.
Elaborado em 1999, o WCAG está na versão 2.1, publicada em 2018. Entre os princípios fundamentais que norteiam tais diretrizes de acessibilidade estão: todo conteúdo precisa ser perceptível, aos olhos e ouvidos, precisa ser operável por teclado, mouse ou voz, precisa ser compreensível por qualquer pessoa, independente de sua deficiência ou habilidade e precisa ser robusto a ponto de funcionar em qualquer ambiente, canal ou tecnologia assistiva.
“Só por esses quatro princípios já desmistificamos outra ideia equivocada que muitas pessoas têm de que a acessibilidade é apenas descrever imagens, recurso utilizado para que pessoas cegas consigam “ver”, sendo apenas o primeiro critério da WCAG e que na prática também não é tão simples como parece. Para exemplificar, feche os olhos e peça a um colega que descreva uma imagem para você. Depois, relate a imagem descrita e vocês vão perceber se havia algum detalhe a melhorar. Este simples exercício é uma forma de treinar a descrição de imagens, algo que também é desafiador para quem não está acostumado com a tarefa”, explica Sales.
Segundo o especialista, outro ponto que normalmente é esquecido pelas empresas, mas que faz parte da acessibilidade digital é a forma como o público acessará a informação que será disponibilizada: por meio do smartphone, tablet, notebook, televisão ou smartwatch. “Precisamos sempre pensar nas novas tecnologias. Exemplo disso é que hoje existem geladeiras com tela, onde é possível também acessar informações. Então, todos os públicos vão, realmente, conseguir ter acesso ao que você está disponibilizando?”, questiona. Por isso, de acordo com o profissional, a acessibilidade digital no Brasil ainda engatinha a passos lentos e são poucas as empresas que estão conseguindo tornar seus produtos digitais realmente acessíveis.
Por onde começar?
Marcelo orienta que o ponto de partida é checar os 78 critérios da WCAG, que são a base para uma acessibilidade aceitável de qualquer produto digital, elas funcionam como heurísticas de usabilidade, mas com foco em acessibilidade. No entanto, segundo o especialista, as diretrizes da WCAG podem ser utilizadas como um checklist, mas considere isso apenas como o “básico bem feito”, há muito além da WCAG para melhorar a qualidade dos produtos digitais.
“A acessibilidade digital é uma ciência complexa, que precisa envolver pessoas e uma série de conhecimentos paralelos, indo da arquitetura da informação, passando pelo design de interação e chegando ao conteúdo e como ele é consumido, sem contar a parte do código (programação)”, esclarece.
“Ou seja, é um projeto que para ser bem sucedido precisa ser planejado e estruturado, envolvendo direção, gestores e times (designers de UX (User experience), programadores, criadores de conteúdo) e é imprescindível que haja uma cultura de inclusão digital em toda a empresa, pois é preciso considerar que há poucos profissionais no mercado de trabalho qualificados em relação às diretrizes da WCAG e, se o profissional que detém o conhecimento pede demissão, a acessibilidade é prejudicada e não terá continuidade. Por isso a importância da acessibilidade digital fazer parte da cultura da empresa, senão o risco de ser deixada de lado por qualquer problema nas equipes é grande”, alerta.
Apesar da complexidade, a boa notícia é que, segundo o especialista, é possível ter uma acessibilidade mínima aceitável ao se cumprir todos os critérios de níveis A e AA da WCAG, ou seja, 50 critérios, ao invés de 78. “Ressaltando apenas que isso não significa que os demais critérios não precisem ser avaliados, apenas que podem ser contemplados em um segundo momento do planejamento”, explica Sales.
E apesar de tecnologias, assistivas ou não, estarem envolvidas, Marcelo ressalta que a melhor forma de saber se o seu produto está indo no caminho certo é envolver o público-alvo em testes de usabilidade com foco em acessibilidade. “Através de avaliadores automáticos é possível identificar problemas relacionados a código, mas esses problemas representam no máximo 35% do todo que se precisa avaliar ao se buscar uma acessibilidade completa. Os 65% restantes são baseados na experiência de uso das pessoas, todas as pessoas. Por exemplo, caso sejam efetuados testes com pessoas com deficiência visual (para citar apenas um dos casos possíveis), deve-se avaliar através das mesmas tarefas dadas para outras pessoas a eficiência em se navegar pelo conteúdo através do uso de um leitor de telas e um teclado. Tarefas específicas para este cenário seriam a validação das descrições das imagens efetuadas. Enfim, deve-se levar em consideração todos os contextos de uso para todos os diferentes tipos de usuários”, exemplifica.

*Marcelo Sales é Designer, há 20 anos desenvolvendo produtos digitais. Hoje atua no Itaú com foco em UX e 100% voltado para Acessibilidade junto com o time de DesignOps. Idealizador do projeto Todos por Acessibilidade (http://acessibilida.de) e do Guia WCAG (http://guiawcag.com). Professor convidado na ESPM e Belas Artes para Cursos Livres, de Pós-Graduação e MBA. É instrutor de Acessibilidade na Mergo User Experience e Membro do Grupo de Trabalho de Acessibilidade do W3C Brasil.