Como já citamos em matérias anteriores, a Terapia Ocupacional tem a função de trabalhar as diversas ocupações do paciente em seu cotidiano, de forma a melhorar a sua qualidade de vida e desempenho nas atividades de vida diária. E para isso é preciso compreender e olhar para a pessoa que está por trás da patologia: um ser humano repleto de vontades, valores, crenças, desejos e capaz de tomar decisões, quando estimulado.
Porém, um lado da profissão e dos profissionais da saúde que atuam com pessoas com necessidades complexas de comunicação e que ainda é pouco discutido é como alinhar as expectativas da família e até mesmo como lidar com um provável luto a partir de um diagnóstico.
Vale ressaltar que o luto nem sempre se refere ao óbito, mas à frustração: “muitas vezes, desde a gestação com o diagnóstico do bebê, os pais começam um processo de luto, porque eles sabem que será uma criança que possivelmente não terá um desenvolvimento típico conforme eles sonhavam. Então, antes mesmo dela nascer, já gera esse luto e negação nos pais que é natural, principalmente pela insegurança do desconhecido e das dificuldades que eles vão enfrentar. Sabemos que uma criança neurotípica também provoca muitas surpresas, mas esses pais carregam uma preocupação a mais por conta da patologia que é algo a princípio desconhecido. Quando a criança nasce, algumas famílias passam a ressignificar de forma positiva toda a situação que se encontram, por terem uma boa rede de apoio, bons profissionais que os acompanham, porém, em outras famílias esse luto vai sendo alimentado por pequenas dificuldades, quando, por exemplo, a criança não segura a cabeça no tempo certo, não caminha, não fala, não se comunica de forma efetiva. A angústia dos pais às vezes aumenta ainda mais quando o filho começa o processo de terapias e, então, surgem as falsas expectativas e questionamentos: ‘será que o meu filho um dia vai se recuperar totalmente? Será que toda essa carga horária de terapia vai trazê-lo para o mais próximo da normalidade possível?’. E, muitas vezes, eles ficam mais de vinte horas por semana nas clínicas em terapias e, devido à convivência com outras famílias a comparação com outras crianças é inevitável ao verem outros pacientes com diagnósticos semelhantes evoluindo e o filho deles não. Ou seja, é um processo de luto e negação que vai sendo alimentado a cada dia, de modo prejudicial e é preciso que os profissionais que prestam atendimento a essas famílias estejam preparados para manejar a situação da melhor forma possível, amparando esses pais no processo de reabilitação dos filhos e no enfrentamento e ressignificação dessas expectativas e concepções”, explica a terapeuta ocupacional, Letícia Caroline Kaspchak de Sá*, que atende pacientes neurológicos em todas as fases de vida, como, em muitos casos, desde a gestação.
“Exatamente pela situação delicada e compreendendo a angústia desses pais é que nós, profissionais atuantes da reabilitação, precisamos estudar muito a comunicação empática, alinhando toda a expectativa que eles têm, mas de forma que, com técnicas específicas de comunicação de más notícias, consigamos abordar assuntos que eles têm dificuldade de ouvir e acolher, porém de forma muito respeitosa, técnica e acolhedora. A participação de profissionais da psicologia nesse processo é muito importante”, orienta a terapeuta ocupacional.
Segundo Letícia, é preciso ainda tato e sensibilidade até mesmo para indicar o uso da Comunicação Alternativa (CA)** e demais tecnologias assistivas, que, muitas vezes é encarada como ‘um balde de água fria’ como uma comprovação de que o filho provavelmente não conseguirá aproximar-se de uma fala ou um comportamento considerados típicos e, consequentemente, não irá corresponder àquela expectativa inicial da família. “Por isso, antes de inserir qualquer dispositivo, qualquer tecnologia assistiva, o terapeuta ocupacional precisa estar preparado para comunicar, por exemplo, que a CA vai ser o suporte necessário para aquele momento em diante e que será uma ponte para uma melhora no seu desenvolvimento, motivação com as terapias, valorização da sua autonomia e demais benefícios, mas deixando claro que pode ser de uso definitivo. E aí surgem as diversas dúvidas sobre como será a evolução do paciente, quais os resultados que os recursos de tecnologia assistiva, de fato trarão, em quanto tempo, entre outros. Por isso, é extremamente necessário que a gente domine essa técnica de comunicar de forma efetiva sobre quais serão os possíveis prognósticos e, principalmente, quais as reais expectativas familiares em relação à melhora e ao desenvolvimento do paciente”, explica.
De acordo com a profissional, a condução da notícia da prescrição aos familiares é um dos principais motivos de resistência e baixa adesão quanto ao uso da tecnologia assistiva. “Muitas vezes, principalmente em pacientes adultos que tinham uma condição normal prévia, mas por conta de uma patologia ou acidente se vêem dependentes de recursos tecnológicos, nem sempre a aceitação acontece de imediato, mesmo porque há um estado inicial de negação, que é normal e previsto em relação à patologia. Daí a importância dos profissionais terem um bom manejo para explicar o quanto a tecnologia assistiva será benéfica e proporcionará melhor qualidade de vida, com o acolhimento integral do paciente e, principalmente, de suas negações, frustrações e expectativas quanto ao prognóstico. Assim, juntamente com técnicas específicas é que o paciente conseguirá, de fato, enxergar com positividade a utilização dos recursos e não abandonar o uso por desinteresse, desconforto, não entendimento da funcionalidade do mesmo, entre outros”, salienta.
Dicas de como alinhar expectativas da família com o tratamento
Para a terapeuta ocupacional, uma forma de alinhar a expectativa dos familiares é estimulá-los a perguntar e tirar todas as dúvidas, promovendo nos atendimentos um ambiente de conforto e acolhimento. “Quando é a primeira avaliação, por exemplo, eu sempre pergunto se a família tem consciência sobre o que é a patologia, se explicaram tudo sobre o tratamento com a Terapia Ocupacional e demais categorias, e como funcionará esse acompanhamento. Porque, por mais difícil que seja o diagnóstico, quando os familiares ou quando o paciente tem acesso à informação e todas as opções de tratamento que pode ter, normalmente o medo é substituído por uma postura e um comportamento de enfrentamento muito positivo. Assim, o paciente se sente mais encorajado, mais seguro e, consequentemente, a aceitação é maior quanto aos recursos de tecnologia assistiva caso seja necessário. Então é muito importante proporcionar ao paciente um ambiente favorável e confortável para que realmente tire todas as suas dúvidas e tenha motivação com o processo terapêutico. Costumo dizer que a motivação é a chave principal para o alcance dos objetivos”, orienta Letícia.
Segundo ela, outra dica é que a família procure grupos de apoio, como as associações de familiares de pacientes com a mesma patologia ou com diagnósticos semelhantes aos do seu filho para que troquem informações e experiências. “Muitas vezes, os familiares não têm coragem de perguntar para o médico certas coisas, mas se sentem mais confortáveis em perguntar e partilhar suas expectativas com outra mãe que também tem um filho com a mesma patologia. E o apoio dessas instituições é fundamental também para que esses pais não se sintam sozinhos nessa jornada e, mais do que isso, que possam ter um olhar mais positivo ao conhecerem casos comprovados do quanto os tratamentos e recursos de tecnologia assistiva melhoraram a qualidade de vida dos pacientes, além de muitas vezes terem o acesso a direitos e benefícios de forma facilitada, visto que nem todos têm condições financeiras para arcar com tudo que o tratamento exige, fator que muitas vezes é o principal gatilho para maiores preocupações”, salienta.
Como lidar com o luto, quando há óbito
“Infelizmente no Brasil prevalece a cultura e o falso entendimento de que os cuidados paliativos só devem ser iniciados quando o paciente está no fim da vida ou quando “não há mais nada a se fazer” pelo ponto de vista médico ou de reabilitação. Mas, nós, que atuamos com pacientes neurológicos ou com problemas crônicos e progressivos, sabemos que dificilmente tais indivíduos terão uma recuperação cem por cento. Então, os cuidados paliativos se iniciam desde o diagnóstico da patologia, principalmente quando esta é categorizada como incompatível com uma vida longa. Cabe a nós, profissionais, nos apropriarmos dessas técnicas e filosofia de cuidado, a fim de despertar nessas famílias a oportunidade de fazerem tudo o que estiver ao seu alcance, não com o objetivo de prolongar esta vida, mas sim para que haja uma vida com qualidade e conforto até o último dia do paciente, respeitando suas vontades, crenças e valores”, diz Letícia.
E complementa: “então, vamos fazer de tudo por essa vida, seja utilizar uma cadeira de rodas de ponta a fim de prevenir deformidades, melhorar condição respiratória, evitar fadiga, adotar o melhor método de comunicação alternativa que vai nos dar um suporte maravilhoso até mesmo para saber e compreender questões de fim de vida, como as suas vontades: se quer ser entubado e reanimado, se deseja se alimentar, se deseja receber a visita de alguém especial, se deseja prosseguir com tal abordagem de tratamento por exemplo. Afinal, a gente precisa ouvir o paciente, saber quais são os seus desejos e respeitar ao máximo a sua vontade, a sua autonomia, caso tenha um cognitivo preservado, senão, a família deve ter participação ativa nesse processo de cuidado”, explica a profissional.
Segundo ela, quando a família, juntamente com o profissional de saúde, aplicou todos os recursos possíveis para melhorar a qualidade de vida do paciente e, ainda assim, este chega a óbito, a compreensão e elaboração desse processo por parte dos familiares é melhor quando há esse acolhimento. Mas cabe, ainda, aos profissionais darem todo o suporte emocional à família, acolhendo-a com respeito e carinho. “Sabemos que, muitas famílias não têm condições de ter um acompanhamento psicológico. Claro que não substituiremos o psicólogo, mas precisamos também estar preparados emocionalmente e tecnicamente porque, na grande maioria das vezes, temos uma equipe reduzida e podemos ser referência para esses familiares devido ao vínculo terapêutico”, destaca a terapeuta ocupacional.
*Letícia Caroline Kaspchak de Sá é graduada em Terapia Ocupacional pela UFPR, com pós-graduação em Neurologia pelo Hospital Israelita Albert Einstein. Atende em Curitiba pacientes neurológicos em todas as fases da vida.
**Nota: Há variações em relação à Comunicação Alternativa. Em algumas regiões, pesquisadores e profissionais utilizam CAA (Comunicação Alternativa e Ampliada), em outras, o termo mais usado é CSA (Comunicação Suplementar Alternativa). Por isso, consideramos todas as variações corretas.
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